sexta-feira, 22 de junho de 2018

No deserto

Nasci de novo no deserto. 
Dei por mim num espaço indefinido, vazio. Chamei de deserto. Não há nada, mas existe. Estou aí. Como posso dizer que nasci de novo? Não me vejo, mas sei. Se é ‘de novo’, tem ontem e amanhã? Não sei do tempo. Não estou cega, mas não posso ver nem reconhecer nada. O que me habita é a consciência total. Tudo é só consciência. Ver, ouvir, sentir e saber tudo. Nada me escapa. Suponho uma redoma. De onde veio essa imagem? Nem sei se tem cima, baixo, frente, costas, direito, avesso, vice ou verso. Mas imaginei uma redoma. Dei esse nome. Inventei, criei, fiz existir. Me ultrapassou a consciência. Agora, aquilo que conheço, que fiz definir esse espaço, delimitou tudo que fica dentro e o que fica fora. Mas fora de onde? Do meu deserto. Sim, tem algo que eu não sei. E é isso que eu sei mais profundamente. É a verdade mais absoluta. Mas que loucura! Até poucos instantes eu não duvidava que sabia de tudo. E agora, duvido de tudo que sei. Preciso de uma prova de que realmente estou aqui, que existo. Busco a matéria. Tem alguma coisa que circula em algum lugar. Acho que em mim. Uma pressão, um vácuo, um intervalo, um som. Tem. De onde vem? Vou repetir, ecoar. Faço pressão, solto de uma vez e ouço. Mas de onde isso vem? De mim, de fora ou de dentro? Tem. Me perdi. Cadê o deserto que estava aqui? É perturbador. Em que lugar eu me meti? Busco o deserto. Acho o silêncio, tenho paz. Mas parece que tem algo em outro lugar, que não aqui onde estou. Mais uma onda. A aflição me faz pressão. Antes mesmo de reproduzir a força produtora do som, fico muda. Vejo um raio, seguido de um barulho estranho. Sou arrancada do meu lugar. Saí. A luz, procuro a luz. Percebo um brilho atrás de mim. Tenho frente e costas. Estou fora. Ouço, vejo, espero. Quero voltar. Não posso. Sensações. Uma superfície gigante rodeia. Engloba minhas recém cavadas cavernas. Não tem começo, não tem fim. Círculos infinitos e sem saída. Labirintos percorridos pela vontade de tocar, segurar. Mais uma pressão. Diferente. Um ponto da superfície é marcado. Ali. É ali. Apoio e limite. Mas quem apalpou? Nem sei como eu faria. Tem outro. Que outro? Quem outro? Já não sou mais livre e estou aprisionada a um não deserto. Finjo não estar aqui. Medito para me deslocar para meu deserto. Chego lá. Estou só. Tudo está completamente parado. Eu já não me satisfaço com essa paz. Lá vem de novo a pressão. Som! Luz! Corpo! Outro! Eu! 
Nasci, fora do deserto.


Simone de Paula - 21/6/2018




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