Heloísa, sorrindo, olhava pela janela da cozinha.
Os meninos faziam a maior algazarra. Corriam e gritavam naquela tarde quente de
final de verão. Greg, seu único filho, era pequeno para sua idade, tímido, mas
muito afetuoso. Brincava todas as tardes com os meninos da rua. Quase todos
tinham a mesma idade, em torno de sete anos. Quando saía alguma confusão,
sempre aparecia uma mãe para dar uma bronca geral e mandar todo mundo para
casa. Greg chegava sempre sorrindo, pois raramente as brigas eram com ele.
Todas as manhãs, ele ia para a escola com o pai,
Dirceu, que seguia para o trabalho na parte sul da cidade. Na hora da saída,
Heloísa o buscava, almoçavam juntos e cochilavam por meia hora na cama de casal.
Depois, ela ia fazer tarefas de casa e o jantar e Greg saía para brincar com os
meninos. Quando Dirceu chegava à noite, o menino já tinha tomado banho, feito
os deveres da escola e participava da conversa dos pais durante o jantar.
No outono, a cidade ficava muito bonita. O frio
vinha rápido, as folhas das árvores caiam e tudo ficava um tanto cinza. Com os
passeios por montanhas, ofertas de chalés e a gastronomia bem cuidada, a região
ficava cheia de turistas. Dirceu e Heloísa tinham conversado sobre alugar o
quarto extra da casa para hóspedes naquele ano. Queriam juntar dinheiro para os
estudos universitários de Greg. Além disso, Dirceu vinha de uma família que
tinha tido pensionato desde os bisavós. Por isso, ele estava acostumado a ter
dentro de casa pessoas de todos os tipos e procedências. No jantar, contaram para
o menino que teriam pessoas estranhas em casa por um tempo. Ele sorriu e achou
que seria diferente, não criou nenhum caso sobre isso.
Duas semanas depois, chegaram os primeiros hóspedes.
Era um casal de meia idade, que vinha do norte e tinha estilo extravagante. A
mulher, Cândida, usava roupas muito coloridas, todas feitas à mão. Tinha sempre
no colo a gata preta, que também tinha vindo com o casal. O marido, Romeu, se
vestia de forma bem sóbria, sempre em preto ou cinza. No rosto, bigodes fartos,
sobrancelhas grossas e óculos ‘fundo de garrafa’, mostrando que sua visão não
era das melhores. Iam ficar por ali cerca de quinze dias.
Heloísa se incumbia das refeições e da arrumação do
quarto deles. Passavam a maior parte do tempo passeando pela região. Dirceu
preferia conversar um pouco durante a noite, quando se encontravam na sala.
Perguntava muito sobre os hábitos que tinham em casa e sobre a forma que
tratavam o animal de estimação.
No último sábado da estadia, o casal convidou Greg
para ir conhecer o Pico da Zebra com eles. Ele se animou, mas queria que a mãe
fosse junto. Heloísa não podia e incentivou o menino a ir sozinho. Ele topou.
Assim que entraram no carro, a gata Romana já pulou
no colo do menino. Quis ficar ali, sendo acariciada o caminho todo. Durante o
passeio, ela se encostava nele sempre que podia. Cândida pareceu enciumada no
começo, mas depois passou a proceder como a gata, acariciando o menino. Romeu, mais
soturno do que de costume, insistia em dar alguns mimos para Greg. Ora era um doce,
ora um brinquedinho. O dia foi perfeito.
Na volta, o casal arrumou a bagagem, pois sairiam
cedo no dia seguinte. Cândida nem deu por falta da gata, que tinha sumido desde
a volta do passeio. Greg tomou banho e dormiu logo após o jantar. Quando amanheceu,
o casal se despediu de Dirceu e foi embora.
No dia seguinte, Heloísa recebeu um telefonema de
Cândida desesperada, pois a gata tinha sumido. Ninguém sabia do bicho.
Procuraram pela cidade, perguntaram aos vizinhos, mas nada da gata aparecer. O
clima ficou estranho na casa, porque eles tinham alugado o quarto pela primeira
vez e tinha acontecido uma situação estranha dessas. Dirceu também tinha
acordado estranho. Passou o dia sonolento, não foi trabalhar e ficou isolado na
edícula. Mal participou da história da gata sumida.
Dois dias depois, retomaram a rotina, mas Heloísa
não se sentia confortável, parecia que havia algo sinistro no ar. Além disso,
por compromissos de trabalho, Dirceu também estava mais ausente e ela se sentia
sozinha, sem nem seu parceiro de conversas noturnas, pois ele chegava sempre
depois da meia-noite. Isso não era incomum, mas pareceu pior quando coincidiu
com uma situação constrangedora do sumiço da gata.
Decidiu não aceitar mais animais com os hóspedes.
Pediu para Dirceu colocar essa observação no anúncio. Mas como a época era boa,
já tinham novos hóspedes agendados para dali duas semanas. Greg parecia mais
aéreo do que o normal. Nada que fosse preocupante, pois era um pouco do
espírito dele perto do inverno. Os cochilos vespertinos duravam mais e as
brincadeiras na rua eram menos frequentes.
Quinze dias depois, 0 novo casal chegou para se
hospedar. Trouxeram os dois filhos, uma criança de quatro anos, Aninha, e o
bebê de nove meses, Christian. Desde a chegada, o bebê não parava de chorar. Os
pais, Vera e Edson, pareciam constrangidos diante de tal situação, mas
esperavam que ele se acostumasse com o ambiente e melhorasse.
Greg tentou brincar com Aninha, mas as idades eram
muito diferentes. Ele preferia ficar com o pequeno Christian. Ele olhava muito
intensamente para a criança e quando fazia isso, o bebê parava de chorar.
Passaram a deixá-lo durante muito tempo com Greg. Quanto mais Greg olhava o
bebê, mais silencioso ficava. Heloísa se incomodou um pouco com o filho tão
fechado, tão estático, mas não sabia o que fazer.
O casal parecia não querer sair da casa, fazer
passeios. Ficavam o tempo todo ali. Montaram a própria rotina na casa
temporária.
Na manhã da quarta-feira, da segunda semana de
hospedagem, Greg não se levantou da cama. Estava deitado, imóvel, com os olhos
vidrados no teto. Heloísa ficou apavorava, gritou com ele, o chacoalhou, chamou
Dirceu, mas nada fazia o menino se mexer. A família ficou assustada. Resolveram
ficar no quarto até a situação se acalmar, para que as crianças não ficassem
traumatizadas. Aninha queria sair, estava mais agitada do que nunca. Pulava na
cama, se jogava no chão, gritava e tentava de todas as formas abrir a porta ou
pular a janela. O bebê Christian chorava de forma estranha, sem abrir os
lábios, parecendo mais um murmúrio.
Heloísa e Vera, as mães, estavam perdidas,
atônitas. Dirceu ligou para o Doutor Fraga e pediu que viesse urgente. Edson
ficava atrás da menina para que ela não arrebentasse a casa.
O médico chegou e foi direto ao quarto de Greg. O
examinou, estava levemente febril. Fez exames neurológicos e o menino estava
completamente normal. Olhou as outras crianças, todos estavam com a mesma
temperatura, 37,6º. Fez as perguntas de praxe: se tinham comido algo diferente,
visitado algum lugar fora do habitual, essas formalidades. Heloísa respondeu
que nada estava fora do normal. Vera disse que estava cozinhando pessoalmente
para seus filhos, mas que poderia ser algo no ar, pois estavam numa cidade
diferente e o campo tende a ser mais rico em micro-organismos do que a cidade
grande. Dirceu pensou em ajudar, contando que um mês antes, tinham hospedado a
gata. Mas que não sabia se poderia ser alguma doença do bicho. O médico
descartou a hipótese na hora. O Doutor Fraga pensou um pouco, mas as atitudes
das crianças não indicavam algum tipo de alergia, pareciam mais psicológicas.
Receitou banho morno para baixar a febre e que retornaria no final da tarde.
Enfiaram as crianças no chuveiro e depois as coisas
mudaram. Aninha ficou paralisada, Greg murmurava como se fosse alma penada e
Christian estava agitadíssimo, dava gritinhos e risadas sem parar. As mulheres
se desesperaram. Os homens, impotentes, fingiram discutir a questão. Heloísa
pediu para alguém fazer algo. Começou a gritar para Eunice, a vizinha, que veio
correndo, porque não entendia uma palavra do que se dizia. Eunice era
benzedeira. Fez o preparado de água e azeite para benzer as crianças. Dirceu
correu para fora da casa, dizia que não suportava essas crendices. Edson e Vera
curiosos, nunca tinham visto um ritual como esse e acharam muito inusitado.
Eunice rezava ininterruptamente e ia lambuzando a
testa dos pequenos. Quando chegou em frente de Greg, ele murmurava mais alto com
olhos arregalados e enraivecidos para ela. Quanto mais ela se aproximava, mais
ele se afastava e a olhava provocando pavor. Ela não se intimidou. Foi seguindo
em direção a ele até que ele ficou encurralado no canto da parede. Quando ela
foi encostar, ele abaixou e deu uma mordida em sua perna, saindo correndo,
rastejando pelo chão. Heloísa correu e o pegou pelos braços, o trazendo para
ser benzido. Ele gritou, esperneou, mas ela conseguiu marcar-lhe a testa com a
poção. Nessa hora, nova mudança, Greg ficou animado, saltitante, sorridente e
hiperativo. O bebê, esse estava catatônico e Aninha fazia o murmúrio mais alto
e sombrio que podiam ouvir. Era aterrador. Heloísa chorava. Vera ficou
perturbada e começou a rezar afastada dos filhos, perdida no canto na sala. Edson
decidiu chamar o padre da paróquia mais próxima. Quando saiu da casa, viu Dirceu
que ouvia os sons vindo lá de dentro e mostrava que sentia muito medo. Ninguém
sabia, mas Dirceu teve uma infância com muitas histórias sobrenaturais, além de
ter tido visões paranormais. Foi criado no meio de pessoas que praticavam magia
negra.
Edson veio com o padre. Assim que ele entrou, com
batina e tudo o mais que precisaria para um ritual de exorcismo, sentiu uma dor
profunda na perna esquerda. Quando olhou, estava sangrando, arranhado. Não
sabia quem tinha feito aquilo, mas era real. Dirceu o ajudou, buscando algo
para limpar o sangue que escorria canela abaixo. Greg ria e pulava de um móvel
para outro, sem parar.
A situação estava cada vez mais fora do controle. O
clima era muito pesado e parecia que o dia escurecia a cada minuto que passava.
O tempo já não obedecia ao relógio e algo estava suspenso no ar.
Antes de começar qualquer coisa, o Padre Wellington
sentou e começou a conversar com os pais, que mal conseguiam prestar atenção,
pois estavam perdidos diante do absurdo que estavam vivendo. A situação era
grave e sobrenatural. Ele pediu que as mães fossem retiradas da sala. Depois
pediu que relatassem tudo que tinha se passado nos últimos trinta dias. Ouviu
com atenção. E fez a última pergunta: e a gata, onde está? Dirceu olhou
estranho para ele e pareceu não se sentir confortável com a pergunta, desconversou
e por fim disse não saber. O padre pediu a Edson que fosse ver se estava tudo
bem com as mulheres.
Assim que Edson saiu, o padre levantou e começou a
olhar pela sala, todos os cantos e detalhes. Parou na frente de um quadro
bucólico que o chamou a atenção pelo pôr-do-sol excessivamente vermelho. Tirou
o quadro da parece e viu a marca de um símbolo de magia negra ali, pintado na própria
parede, com a impressão de já estar ali há alguns anos. Olhou para Dirceu e
perguntou: você que fez isso? Isso é sangue! Sangue de quem? O homem não
conseguia olhar diretamente para o padre e desviava o olhar para a porta de
saída da casa. O padre seguiu farejando, abriu um pequeno baú, que parecia
deslocado junto aos copos de whisky. Lá encontrou chumaços de pelo negro, de
gato, com restos de um líquido viscoso, vermelho. Também sangue. E a coisa não
parou por ai, detalhes disfarçados, misturados pela sala toda. A cada
descoberta, ele olhava Dirceu, que estava se transformando, tinha agora um
semblante demoníaco e o olhar que se revezava entre os pés do padre e a porta
da casa.
O padre se muniu de seus apetrechos, ficou de
costas para Dirceu, fingindo se olhar no espelho grande da sala. Arrumando a
batina, chamou Dirceu, com a voz mais potente e segura que ele poderia sustentar
e o olhou fixamente através do espelho. “O que você fez com essas crianças?”,
perguntou de forma direta. Que espécie de feitiço foi esse? Aonde a gata está
presa?
Dirceu não conseguia se mexer dali, parecia colado
ao sofá, preso por algum tipo de feitiço do padre, ou mesmo o efeito do
espelho. Ele não respondia, rangia os dentes, espumava, olhava em volta, reagia
como um animal furioso. Cadê a gata?
Edson voltou para a sala para ver o que estava acontecendo.
O padre ordenou que ele não entrasse no ambiente, mas que descobrisse o nome da
gata preta do casal. “Romana”, disse o pai das crianças. O padre invocou a
presença de Romana.
Nessa hora, Dirceu começou a se contorcer, parecia
estar sendo virado do avesso. Da boca dele foi saindo um amálgama viscoso,
gosmento. A gata saiu de lá, inteira, viva, mais negra do que nunca, com o
brilho luminoso das vísceras de Dirceu. O pobre homem desmaiou.
O padre começou a rezar e jogar água benta no
animal. Com gritos e frases religiosas, expressões em línguas estrangeiras, o
ritual seguia como se fosse um espetáculo antigo. O cansaço era aparente e a
exigência da situação, que já parecia tomar um tempo longo demais, mostrava que
talvez aquilo não fosse ser resolvido. A gata estava paralisada, como Dirceu
antes dela. Quanto mais ele rezava, mais sua energia ia diminuindo. Ele estava
prestes a cair, sem forças, quando ouviu o choro de Christian. Aquele som o
animou. Ele fez a última oração com seu maior vigor. Olhou para Romana, que
parecia tranqüila e voltava a ser a gata de Cândida, apenas um bicho de
estimação. Greg viu o pai caído no chão e veio em seu auxílio. Aninha foi
acalmar seu irmão, acariciando seus bracinhos.
O padre desmontou na poltrona que estava bem ao seu
lado. Eunice, que ficou na cozinha o tempo todo, trouxe um copo de água e panos
e álcool para o padre se recompor. Assim que ele estava mais consciente,
comandou os passos seguintes da situação, pois não sairia de lá sem que tudo
estivesse no seu devido lugar. Avisou Edson que era hora de limpar toda a
bagunça e voltarem para casa. Olhou Heloísa, e pediu para ela ligar e devolver
a gata. Tocou o ombro de Dirceu, combinou que precisariam conversar sobre seu ‘hobby”
e o orientou a frequentar as missas todos os dias pelos próximos sete anos.
Saindo da casa, lembrou de algumas leituras na
época do seminário, de rituais e grupos satânicos. Sempre imaginou que fosse
mero simbolismo, se enganou. Agora, pesquisaria mais o caso para ajudar Dirceu,
um pobre homem marcado pela tradição familiar. Esperava poder lhe dar paz.
Simone de Paula - 30/4/2018
Obs.: este conto foi escrito para o concurso "100 contos - Policialescos', da Editora Anansi Books
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