sexta-feira, 15 de junho de 2018

A sina do menino


Heloísa, sorrindo, olhava pela janela da cozinha. Os meninos faziam a maior algazarra. Corriam e gritavam naquela tarde quente de final de verão. Greg, seu único filho, era pequeno para sua idade, tímido, mas muito afetuoso. Brincava todas as tardes com os meninos da rua. Quase todos tinham a mesma idade, em torno de sete anos. Quando saía alguma confusão, sempre aparecia uma mãe para dar uma bronca geral e mandar todo mundo para casa. Greg chegava sempre sorrindo, pois raramente as brigas eram com ele.
Todas as manhãs, ele ia para a escola com o pai, Dirceu, que seguia para o trabalho na parte sul da cidade. Na hora da saída, Heloísa o buscava, almoçavam juntos e cochilavam por meia hora na cama de casal. Depois, ela ia fazer tarefas de casa e o jantar e Greg saía para brincar com os meninos. Quando Dirceu chegava à noite, o menino já tinha tomado banho, feito os deveres da escola e participava da conversa dos pais durante o jantar.
No outono, a cidade ficava muito bonita. O frio vinha rápido, as folhas das árvores caiam e tudo ficava um tanto cinza. Com os passeios por montanhas, ofertas de chalés e a gastronomia bem cuidada, a região ficava cheia de turistas. Dirceu e Heloísa tinham conversado sobre alugar o quarto extra da casa para hóspedes naquele ano. Queriam juntar dinheiro para os estudos universitários de Greg. Além disso, Dirceu vinha de uma família que tinha tido pensionato desde os bisavós. Por isso, ele estava acostumado a ter dentro de casa pessoas de todos os tipos e procedências. No jantar, contaram para o menino que teriam pessoas estranhas em casa por um tempo. Ele sorriu e achou que seria diferente, não criou nenhum caso sobre isso.
Duas semanas depois, chegaram os primeiros hóspedes. Era um casal de meia idade, que vinha do norte e tinha estilo extravagante. A mulher, Cândida, usava roupas muito coloridas, todas feitas à mão. Tinha sempre no colo a gata preta, que também tinha vindo com o casal. O marido, Romeu, se vestia de forma bem sóbria, sempre em preto ou cinza. No rosto, bigodes fartos, sobrancelhas grossas e óculos ‘fundo de garrafa’, mostrando que sua visão não era das melhores. Iam ficar por ali cerca de quinze dias.
Heloísa se incumbia das refeições e da arrumação do quarto deles. Passavam a maior parte do tempo passeando pela região. Dirceu preferia conversar um pouco durante a noite, quando se encontravam na sala. Perguntava muito sobre os hábitos que tinham em casa e sobre a forma que tratavam o animal de estimação.
No último sábado da estadia, o casal convidou Greg para ir conhecer o Pico da Zebra com eles. Ele se animou, mas queria que a mãe fosse junto. Heloísa não podia e incentivou o menino a ir sozinho. Ele topou.
Assim que entraram no carro, a gata Romana já pulou no colo do menino. Quis ficar ali, sendo acariciada o caminho todo. Durante o passeio, ela se encostava nele sempre que podia. Cândida pareceu enciumada no começo, mas depois passou a proceder como a gata, acariciando o menino. Romeu, mais soturno do que de costume, insistia em dar alguns mimos para Greg. Ora era um doce, ora um brinquedinho. O dia foi perfeito.
Na volta, o casal arrumou a bagagem, pois sairiam cedo no dia seguinte. Cândida nem deu por falta da gata, que tinha sumido desde a volta do passeio. Greg tomou banho e dormiu logo após o jantar. Quando amanheceu, o casal se despediu de Dirceu e foi embora.
No dia seguinte, Heloísa recebeu um telefonema de Cândida desesperada, pois a gata tinha sumido. Ninguém sabia do bicho. Procuraram pela cidade, perguntaram aos vizinhos, mas nada da gata aparecer. O clima ficou estranho na casa, porque eles tinham alugado o quarto pela primeira vez e tinha acontecido uma situação estranha dessas. Dirceu também tinha acordado estranho. Passou o dia sonolento, não foi trabalhar e ficou isolado na edícula. Mal participou da história da gata sumida. 
Dois dias depois, retomaram a rotina, mas Heloísa não se sentia confortável, parecia que havia algo sinistro no ar. Além disso, por compromissos de trabalho, Dirceu também estava mais ausente e ela se sentia sozinha, sem nem seu parceiro de conversas noturnas, pois ele chegava sempre depois da meia-noite. Isso não era incomum, mas pareceu pior quando coincidiu com uma situação constrangedora do sumiço da gata.
Decidiu não aceitar mais animais com os hóspedes. Pediu para Dirceu colocar essa observação no anúncio. Mas como a época era boa, já tinham novos hóspedes agendados para dali duas semanas. Greg parecia mais aéreo do que o normal. Nada que fosse preocupante, pois era um pouco do espírito dele perto do inverno. Os cochilos vespertinos duravam mais e as brincadeiras na rua eram menos frequentes.
Quinze dias depois, 0 novo casal chegou para se hospedar. Trouxeram os dois filhos, uma criança de quatro anos, Aninha, e o bebê de nove meses, Christian. Desde a chegada, o bebê não parava de chorar. Os pais, Vera e Edson, pareciam constrangidos diante de tal situação, mas esperavam que ele se acostumasse com o ambiente e melhorasse.
Greg tentou brincar com Aninha, mas as idades eram muito diferentes. Ele preferia ficar com o pequeno Christian. Ele olhava muito intensamente para a criança e quando fazia isso, o bebê parava de chorar. Passaram a deixá-lo durante muito tempo com Greg. Quanto mais Greg olhava o bebê, mais silencioso ficava. Heloísa se incomodou um pouco com o filho tão fechado, tão estático, mas não sabia o que fazer.
O casal parecia não querer sair da casa, fazer passeios. Ficavam o tempo todo ali. Montaram a própria rotina na casa temporária.
Na manhã da quarta-feira, da segunda semana de hospedagem, Greg não se levantou da cama. Estava deitado, imóvel, com os olhos vidrados no teto. Heloísa ficou apavorava, gritou com ele, o chacoalhou, chamou Dirceu, mas nada fazia o menino se mexer. A família ficou assustada. Resolveram ficar no quarto até a situação se acalmar, para que as crianças não ficassem traumatizadas. Aninha queria sair, estava mais agitada do que nunca. Pulava na cama, se jogava no chão, gritava e tentava de todas as formas abrir a porta ou pular a janela. O bebê Christian chorava de forma estranha, sem abrir os lábios, parecendo mais um murmúrio.
Heloísa e Vera, as mães, estavam perdidas, atônitas. Dirceu ligou para o Doutor Fraga e pediu que viesse urgente. Edson ficava atrás da menina para que ela não arrebentasse a casa.
O médico chegou e foi direto ao quarto de Greg. O examinou, estava levemente febril. Fez exames neurológicos e o menino estava completamente normal. Olhou as outras crianças, todos estavam com a mesma temperatura, 37,6º. Fez as perguntas de praxe: se tinham comido algo diferente, visitado algum lugar fora do habitual, essas formalidades. Heloísa respondeu que nada estava fora do normal. Vera disse que estava cozinhando pessoalmente para seus filhos, mas que poderia ser algo no ar, pois estavam numa cidade diferente e o campo tende a ser mais rico em micro-organismos do que a cidade grande. Dirceu pensou em ajudar, contando que um mês antes, tinham hospedado a gata. Mas que não sabia se poderia ser alguma doença do bicho. O médico descartou a hipótese na hora. O Doutor Fraga pensou um pouco, mas as atitudes das crianças não indicavam algum tipo de alergia, pareciam mais psicológicas. Receitou banho morno para baixar a febre e que retornaria no final da tarde.
Enfiaram as crianças no chuveiro e depois as coisas mudaram. Aninha ficou paralisada, Greg murmurava como se fosse alma penada e Christian estava agitadíssimo, dava gritinhos e risadas sem parar. As mulheres se desesperaram. Os homens, impotentes, fingiram discutir a questão. Heloísa pediu para alguém fazer algo. Começou a gritar para Eunice, a vizinha, que veio correndo, porque não entendia uma palavra do que se dizia. Eunice era benzedeira. Fez o preparado de água e azeite para benzer as crianças. Dirceu correu para fora da casa, dizia que não suportava essas crendices. Edson e Vera curiosos, nunca tinham visto um ritual como esse e acharam muito inusitado.
Eunice rezava ininterruptamente e ia lambuzando a testa dos pequenos. Quando chegou em frente de Greg, ele murmurava mais alto com olhos arregalados e enraivecidos para ela. Quanto mais ela se aproximava, mais ele se afastava e a olhava provocando pavor. Ela não se intimidou. Foi seguindo em direção a ele até que ele ficou encurralado no canto da parede. Quando ela foi encostar, ele abaixou e deu uma mordida em sua perna, saindo correndo, rastejando pelo chão. Heloísa correu e o pegou pelos braços, o trazendo para ser benzido. Ele gritou, esperneou, mas ela conseguiu marcar-lhe a testa com a poção. Nessa hora, nova mudança, Greg ficou animado, saltitante, sorridente e hiperativo. O bebê, esse estava catatônico e Aninha fazia o murmúrio mais alto e sombrio que podiam ouvir. Era aterrador. Heloísa chorava. Vera ficou perturbada e começou a rezar afastada dos filhos, perdida no canto na sala. Edson decidiu chamar o padre da paróquia mais próxima. Quando saiu da casa, viu Dirceu que ouvia os sons vindo lá de dentro e mostrava que sentia muito medo. Ninguém sabia, mas Dirceu teve uma infância com muitas histórias sobrenaturais, além de ter tido visões paranormais. Foi criado no meio de pessoas que praticavam magia negra.
Edson veio com o padre. Assim que ele entrou, com batina e tudo o mais que precisaria para um ritual de exorcismo, sentiu uma dor profunda na perna esquerda. Quando olhou, estava sangrando, arranhado. Não sabia quem tinha feito aquilo, mas era real. Dirceu o ajudou, buscando algo para limpar o sangue que escorria canela abaixo. Greg ria e pulava de um móvel para outro, sem parar.
A situação estava cada vez mais fora do controle. O clima era muito pesado e parecia que o dia escurecia a cada minuto que passava. O tempo já não obedecia ao relógio e algo estava suspenso no ar.
Antes de começar qualquer coisa, o Padre Wellington sentou e começou a conversar com os pais, que mal conseguiam prestar atenção, pois estavam perdidos diante do absurdo que estavam vivendo. A situação era grave e sobrenatural. Ele pediu que as mães fossem retiradas da sala. Depois pediu que relatassem tudo que tinha se passado nos últimos trinta dias. Ouviu com atenção. E fez a última pergunta: e a gata, onde está? Dirceu olhou estranho para ele e pareceu não se sentir confortável com a pergunta, desconversou e por fim disse não saber. O padre pediu a Edson que fosse ver se estava tudo bem com as mulheres.
Assim que Edson saiu, o padre levantou e começou a olhar pela sala, todos os cantos e detalhes. Parou na frente de um quadro bucólico que o chamou a atenção pelo pôr-do-sol excessivamente vermelho. Tirou o quadro da parece e viu a marca de um símbolo de magia negra ali, pintado na própria parede, com a impressão de já estar ali há alguns anos. Olhou para Dirceu e perguntou: você que fez isso? Isso é sangue! Sangue de quem? O homem não conseguia olhar diretamente para o padre e desviava o olhar para a porta de saída da casa. O padre seguiu farejando, abriu um pequeno baú, que parecia deslocado junto aos copos de whisky. Lá encontrou chumaços de pelo negro, de gato, com restos de um líquido viscoso, vermelho. Também sangue. E a coisa não parou por ai, detalhes disfarçados, misturados pela sala toda. A cada descoberta, ele olhava Dirceu, que estava se transformando, tinha agora um semblante demoníaco e o olhar que se revezava entre os pés do padre e a porta da casa.
O padre se muniu de seus apetrechos, ficou de costas para Dirceu, fingindo se olhar no espelho grande da sala. Arrumando a batina, chamou Dirceu, com a voz mais potente e segura que ele poderia sustentar e o olhou fixamente através do espelho. “O que você fez com essas crianças?”, perguntou de forma direta. Que espécie de feitiço foi esse? Aonde a gata está presa?
Dirceu não conseguia se mexer dali, parecia colado ao sofá, preso por algum tipo de feitiço do padre, ou mesmo o efeito do espelho. Ele não respondia, rangia os dentes, espumava, olhava em volta, reagia como um animal furioso. Cadê a gata?
Edson voltou para a sala para ver o que estava acontecendo. O padre ordenou que ele não entrasse no ambiente, mas que descobrisse o nome da gata preta do casal. “Romana”, disse o pai das crianças. O padre invocou a presença de Romana.
Nessa hora, Dirceu começou a se contorcer, parecia estar sendo virado do avesso. Da boca dele foi saindo um amálgama viscoso, gosmento. A gata saiu de lá, inteira, viva, mais negra do que nunca, com o brilho luminoso das vísceras de Dirceu. O pobre homem desmaiou.
O padre começou a rezar e jogar água benta no animal. Com gritos e frases religiosas, expressões em línguas estrangeiras, o ritual seguia como se fosse um espetáculo antigo. O cansaço era aparente e a exigência da situação, que já parecia tomar um tempo longo demais, mostrava que talvez aquilo não fosse ser resolvido. A gata estava paralisada, como Dirceu antes dela. Quanto mais ele rezava, mais sua energia ia diminuindo. Ele estava prestes a cair, sem forças, quando ouviu o choro de Christian. Aquele som o animou. Ele fez a última oração com seu maior vigor. Olhou para Romana, que parecia tranqüila e voltava a ser a gata de Cândida, apenas um bicho de estimação. Greg viu o pai caído no chão e veio em seu auxílio. Aninha foi acalmar seu irmão, acariciando seus bracinhos.
O padre desmontou na poltrona que estava bem ao seu lado. Eunice, que ficou na cozinha o tempo todo, trouxe um copo de água e panos e álcool para o padre se recompor. Assim que ele estava mais consciente, comandou os passos seguintes da situação, pois não sairia de lá sem que tudo estivesse no seu devido lugar. Avisou Edson que era hora de limpar toda a bagunça e voltarem para casa. Olhou Heloísa, e pediu para ela ligar e devolver a gata. Tocou o ombro de Dirceu, combinou que precisariam conversar sobre seu ‘hobby” e o orientou a frequentar as missas todos os dias pelos próximos sete anos.
Saindo da casa, lembrou de algumas leituras na época do seminário, de rituais e grupos satânicos. Sempre imaginou que fosse mero simbolismo, se enganou. Agora, pesquisaria mais o caso para ajudar Dirceu, um pobre homem marcado pela tradição familiar. Esperava poder lhe dar paz.

Simone de Paula - 30/4/2018
 

 Obs.: este conto foi escrito para o concurso "100 contos - Policialescos', da Editora Anansi Books

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