sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Palavras

No meio do dia ouvi um barulho estranho, insistente, que parecia vir de fora, mas era tão próximo que podia estar dentro da minha sala. O que era dito não parecia querer dizer nada, mas tinha uma sonoridade familiar. Tentei me concentrar no que eu estava fazendo, focada num tema que eu precisava aprender, novo, que pedia muita atenção.Mas o burburinho não deixou a minha curiosidade em paz. Fui ver do que se tratava. Olhei pela janela, mas por causa das casas vizinhas, eu não tinha um ângulo de visão satisfatório. Não vi nada, mas percebi o som mais nítido. Sim, era um bando de papagaios repetindo palavras sem muita conexão. Poderia ser um antigo disco de vinil riscado, mas eram papagaios. 
Papagaio voa? Voa! 
Essa é uma dúvida que nunca tinha me ocorrido até o dia que, numa filmagem, o bicho fugiu. Era como toda filmagem, cheia de contratempos para deixar tudo mais excitante com um 'quê' de vitória de gincana. Era um filme para uma ong, sem nenhum dinheiro, equipe 'colaborativa', se diria hoje, porque eram as pessoas com quem eu trabalhava sempre, topando ceder uma manhã para ajudar em alguma campanha. Pensando bem, esse filme era para o festival de Cannes, um filme fake, mas o chamávamos de 'fantasma'. Interessante isso, o fantasma virou fake. Voltando... o adestrador de papagaio, um velhinho que deve estar vivo até hoje, nem lembro o nome, tinha dado petiscos para acalmar o pássaro. Sim, as estrelas animais dos comerciais também são drogadas para suportar tal atividade, glamourosa para quem está fora e destrutiva para quem está dentro. Voltando 2... Tudo pronto para rodar, o produtor chama o papagaio. E diz o tratador, "o papagaio já deveria estar no poleiro", no set, na cena. Não estava, tinha sumido. Procura o papagaio daqui, de lá, chama e nada do bicho. Sim, pensando bem, há uma meia hora o ambiente barulhento tinha perdido uma voz, a do papagaio, e ninguém notou. Talvez porque ele estivesse repetindo suas falas e aquilo que se fala demais, para de fazer som. Cancela tudo! E era nessa hora que meu telefone tocava, quando o problema sem solução aparecia. Recebo a ligação com a seguinte mensagem, "o papagaio fugiu!" Como assim? Papagaio voa?, eu disse. E me explicaram que voa, afinal, é ave, como o frango que a gente compra e come, mas nunca vê o corpo inteiro. Eu soube então que ele voa, mas que cortam as asas para que ele fique no poleiro sem precisar ser gaiola fechada. Odiei naquele momento cada pessoa que já teve ou tem um papagaio em casa, para seu deleite, para gozar da repetição da sua fala na boca do outro. O adestrador estava chateadíssimo, porque tinha perdido, não um animal de estimação, mas sua fonte de renda tão estimada. Equipe de volta, cada um na sua casa, panfletos distribuídos pela região de Pinheiros, e algumas semanas depois o resgate eficiente. Moral da história: mesmo drogado, com asas o papagaio voa.
Mas olha que desvio que eu fiz, justamente porque queria contar da cena fantástica de um bando de papagaios fujões, que falavam livremente as palavras repetidas por anos de confinamento, num ato rebelde e libertário. 

Simone de Paula - 31/8/2018

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