O barulho do tráfego de veículos anunciava
o começo de mais uma manhã. Ela estava presa há muitos dias, não sabia dizer o
quanto. O tempo não era mais contado. No começo tentou manter o hábito: ficar
acordada de dia e dormir à noite. Mas isso não fazia sentido nenhum, pois não
tinha nada para fazer, nem de dia, nem de noite. A espera era permanente,
portanto a lógica a luz não importava.
Levou um susto com o grito da
carcereira, “se arruma, seu julgamento é hoje. O advogado já está aqui.”
Levantou, passou a mão pela roupa surrada que usava, alisou o cabelo, estava
arrumada.
No tribunal sabia que deveria
ficar calada. Se alguém lhe perguntasse algo, só responderia quando autorizada.
Não tinha mesmo mais nada a dizer. Sua culpa era real e não ia fugir disso. O
julgamento começou. Advogado de acusação, defesa, falatório sem fim. Em alguns
momentos, abria os ouvidos para captar em que parte do processo estava. Quando ouvia
alguém falar algo de forma a parecer fato incontestável, sabia que não
correspondia à realidade de todo aquele crime. Não falou nada, não podia e nem
queria falar mais nada daquilo. O fato é que ela cometeu um crime, estava sendo
julgada e pagaria a pena. Isso era o fato e só.
Horas e mais horas sentada ali.
Apontavam para ela, olhavam para ela, falavam dela. Estava num palco e sua
performance era parecer um manequim, parado, apenas apresentando a coleção de
algum gênio da moda, que neste caso, era o discurso do advogado.
O julgamento não foi rápido. Seu
depoimento também demorou muito tempo. Era monossilábica, não tinha como se
defender. Muitas vezes parecia até cruel ou insensível, tamanho realismo com
que contava o que tinha feito. Naquela tarde fria de inverno, estava em casa. Olhava
aquele que a perturbava, olhava a faca. Não tinha porque não fazer um se
encontrar com o outro. Matou sim, porque não tinha outro destino, nem para o
amante, nem para a faca e muito menos para si mesma.
O juiz parecia não saber direito
como condená-la. Ela era enigmática para ele. Não a julgara de antemão, pois
talvez soubesse do segredo daqueles que não podem fazer nada além do que
fizeram. O crime é premeditado, porque não há nada além do crime a fazer. Olhava
muito para ela, queria poder julgá-la e não apenas seguir os passos daqueles
que já tinham estabelecido um destino para ela, os advogados ou a própria Lei.
Ele sabia que ela seria presa, sabia do crime, mas queria poder aplicar a pena exatamente
no tamanho do seu ato, da sua culpa, para que quando ela saísse, se sentisse
verdadeiramente quitada.
Cinco dias depois, saiu a
sentença: dez anos de reclusão. Ela ouviu, assentiu com a cabeça, parecia achar
justo. Os últimos dez anos de sua vida tinham sido insistindo em achar um
sentido e agora teria mais dez para saber que não estava do lado de fora, mas
dentro. Finalmente um homem determinou seu destino, como ela tanto esperou dos
últimos relacionamentos que teve.
Agora não estava mais presa numa
cadeia urbana, em que tinha a referência do som da cidade para se guiar. Foi transferida
para a penitenciária pública no interior. Chegando lá, ouvia mais ecos do que
silêncio, pois o prédio de proporções significativas parecia isolar inclusive o
som que vinha de fora. Para sentir tempo, espaço, sensações, teria que ser nos
intervalos dos banhos de sol e atividades coletivas na área externa da
construção.
Estava acostumada a obedecer e
isso a ajudou a estabelecer seu lugar ali. Percebeu a hierarquia e se colocou
num papel de reclusão. Não queria fazer amizades, nem aparecer, chegou muda e
se fez de cega e surda. Não sabia nunca de nada. Se resguardou assim. Era não
pouco combativa e estava tão resignada, que lhe foi permitido pelas colegas
ficar no seu canto. Parecia não conseguir mais ajustar seu relógio biológico
com o tempo do mundo. Seguia dormindo de dia e acordada à noite. Quando era
obrigada a sair, saía, mas não respondia muito a um protocolo padrão. Não fez
da prisão uma casa, não tentou moldar aquele espaço com as suas ideias de um
lar, uma vida em sociedade, estava mesmo afastada do campo social, não
pertencia e não opinava e nem construía.
Uma das carcereiras parecia
olhá-la como o juiz, como se ela tivesse algo ali, preso dentro dela e que
poderia sair a qualquer momento. Tinha força, intensidade, mas não era destrutivo.
Era uma erupção que poderia acontecer de súbito, como um vulcão.Sugeriu que ela frequentasse a biblioteca, pois ali teria mais o que fazer do que ficar ouvindo
papo furado das colegas. Ela aceitou e
ali encontrou uma forma de criar uma conexão com o seu tempo e seu espaço. Mais
uma pessoa que notou algo nela e lhe indicou um destino para seguir, dessa vez,
uma mulher.
Nas noites de lua cheia a cela
parecia se iluminar. Eram noites prazerosas. Ela olhava a parede abaixo das
grades como quem olha um portal. Olhava longa e fixamente. Respirava. Parecia
que via ali a tal erupção que juiz e carcereira viram nela. Não sabia como
extrair isso dali, como ajudar a parede a expor o que tinha contido nela.
Quebrou o silêncio pela primeira
vez depois de três anos. Comentou brevemente com a carcereira, sua conselheira,
sobre enxergar algo na parede. Depois do jantar, quando foram recolher as
bandejas, a carcereira deixou cair a colher do seu prato e não fez questão de
pegar. Simulou um chute para dentro da cela. Sussurrou: “guarde isso!”
Ela guardou e segurava toda noite
aquele amuleto enquanto olhava para a parede que falava com ela com palavras
intraduzíveis. Mais dois anos se passaram. O corpo dela parecia cada vez mais
potente, seus olhos mais vivos, ela estava quase entendendo o que era dito nas
suas longas conversas noturnas com a parede de sua cela.
Numa noite mais quente de lua
cheia de verão, as colegas de cela brigaram por motivos desconhecidos por ela.
Todas foram suspensas e levadas para a solitária. Ela foi enclausurada. Silêncio,
escuro, não tinha como ver nenhum vestígio do ambiente em que estava.
Assustada, perdida, angustiada. Fechou os olhos fortemente, colocou a mão nos
ouvidos e passou a noite inteira gritando sem parar. Amanheceu e foram
devolvidas à cela que habitavam. Ela estava esgotada, mas quando entrou
novamente naquele espaço familiar, viu a parede de uma forma completamente
nova. Pegou a colher-amuleto e passou a riscar aquela superfície de concreto.
Raspava, riscava, sem parar. As colegas diziam: se vai cavar um túnel, neném,
melhor no chão, porque aí, quando acabar a parede, tem abismo, você morre. Riam
e ela riscava. Toda noite o barulho intermitente de metal no concreto embalava
as presas e a animava.
O tempo passou, a carcereira
olhava o que acontecia ali. Não tinha como registrar aquilo, não poderia entrar
com uma câmera fotográfica, mas queria que mais alguém soubesse. Se contasse
para sua chefe, poderiam tirar o utensílio dela. Mantinha segredo, mas
admirava, sabia que aquilo tinha um valor maior do que as rasuras vistas pelas
outras presas.
O tempo passou e seu advogado
pediu redução de pena por bom comportamento. Ainda não tinha sido julgada a
liberação, mas o advogado foi visitá-la para dizer o andamento do processo. Ela
se recusou a sair antes, disse que estava no meio da produção de algo e que já
tinha contabilizado o tempo, precisava mesmo ficar todos os dias e horas da
pena estipulada pelo juiz. Ele não entendeu, mas aceitou, não poderia tentar tirá-la
dali. Percebera que ela estava estranha, meio doida. E, naquele estado de
insanidade em que ele a via, imaginava que ela seria capaz de cometer outro
crime para não ser obrigada a fazer o que não queria.
Dois dias antes da sua liberação,
a carcereira falou novamente com ela. “Sua obra é magnífica. Está pronta? Daqui
dois dias você será liberada.” E ela respondeu: “sim, em dois dias estará
finalizada”. Nesse momento a carcereira resolveu comunicar o fato à sua
superior, que veio olhar o trabalho em todas as paredes, teto e chão da cela.
Era impressionante. Tinham notado que as colegas de cela tinham ficado muito
mais tranquilas, pois pareciam embaladas pelo vigor das marcas que ela fazia.
Agora parecia ter alguma conexão entre os fatos. Aceitou fotografar tudo.
Contou para o advogado de defesa, que anexou as fotos ao processo. Na hora do pedido
de soltura, no dia que ela seria liberada, o mesmo juiz viu, junto aos autos, as fotos. Ficou impressionado. Pediu para
recebê-la assim que ela fosse liberada, queria dizer-lhe algumas palavras.
Guardou as fotos com ele. Ela recebeu da carcereira o aviso sobre ser a hora de
sair, para se arrumar. Ela fez o mesmo gesto do dia do julgamento, passou a mão
pelas roupas, alisou o cabelo. Pegou a colher e devolveu para a carcereira e
seguiu para fora da cela. Não olhou para trás.
Diante do juiz, disse estar
pronta para seguir em nova direção. Queria trabalhar em minas, cavar buracos
nas pedras. Se ela não pudesse cavar algo, mataria alguém de novo. Ele a
apresentou a um amigo que apoiava artistas marginais. Seguiu lapidando
cavernas.
Simone de Paula – 24/06/2018
Conto inspirado na história do pintor francês Augustin Lesage