quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Cereja tem seu próprio doce

Estava na cozinha desde cedo, bem logo saiu a luz do dia. A janela era grande, de vidro e ainda dava pra ver verde no fundo. Algumas árvores, alguns prédios, tinha um bom bocado de céu também. Era um orgulho aquela imensidão toda do cômodo preferido. Teria tempo pra fazer o que queria fazer: um grande café da manhã depois de mais uma noite em claro. Sim, não eram raras as noites sem dormir nada. Tentou luz azul no fundinho, música meditante indiana, orgânica, shiva om shiva, chás, quase todos e literatura. Mas estava desperta, acordada, de olhos bem abertos. Abriu a geladeira, figo, manteiga, cerejas bem maduras do Natal, leite, semente de girassol. Há dois dias tinha desenvolvido uma técnica pessoal ainda sem eficácia comprovada para aliviar sua insônia. Era assim: a cada noite elegia alguém pra pensar, começou com o marido. Tinha de ser alguém da família. Aí com a imagem na cabeça e o sentimento mediando a coisa toda ela começava. Ele, ele, ele. Nos conhecemos. Lembro do dia da camiseta vermelha com um pingo de mancha branca de cândida bem no umbigo. Me olhou daquele jeito arrepiante, eu dançava e suava. Hora de pensar na combinação do fogo com figos, cerejas, leite. Imagina as três filhas ao acordarem. Sofia chegaria toda arrumada, já pronta pra escola com livro na mão fingindo ignorar a mesa tão bem posta tão cedo. Luana se sentaria sem ver nada, apenas um prato em sua frente que empurraria pra poder deitar a cabeça sobre a mesa pro resto de sono viver. Raquel perguntaria ironicamente o que é que estava acontecendo com aquela mesa posta em dia de semana com a toalha azul e os pratos verdes e que faltava um tom mais quente para  um dia mais acolhedor. Algo poderia ser feito, ovos, precisa, farinha, uma boa, sim. Panquecas, das altas, com uma geléia de cereja por cima, sementes de girassol tostadas no mel, sim, por cima de tudo. O figo frio. Naquela noite pensaria em Sofia, o dia que ela nasceu, a primeira. Lembrou da dor de um ventre aberto, rasgado, dando a primeira vida, ela tão pequena em minhas mãos, com um choro rasgado também, ela me olhando sem abrir os olhos me desafiando a aceitá-la e mais tarde sua maneira de ver o mundo, tão racionalmente diferente da minha. A massa estava pronta e levei o primeiro círculo pra dentro da frigideira, demorou pra pegar a forma, na segunda foi, a cereja sem caroços na panela, um pouco de água fervente pra amolecer. Açúcar. A música do Chico, vai colocar filha, aquela do afeto. Luana não escutava nada, mas ela era quem sabia onde encontrar cada pedido desses. No dia de pensar nela sabia que haveria ritmo, embalo e nino, nana, naninha de Luana. Nessa noite em claro era mais provável a presença de um um sorriso calmo no rosto. Diferente seria a de Raquel, ferinha afiada. Era tão importante que ela trouxesse o incômodo mais complicado e difícil de ver. Foram muitas sessões pra saber que era de mim que a pequena falava. Era a sua observação cortante que dilacerava as minhas defesas tão supostamente bem fincadas num lugar impenetrável e protegido. Essa menina, essa pequena, meu último parto, meu ninho completo. Ela fazia as perguntas mais difíceis do mundo todo, queria arrancar de mim a verdade, somente a verdade, que eu nunca poderia dizer a ela. Da minha dúvida em mim mesma. Da minha fragilidade a ponto de cair no chão e não levantar, mesmo tendo feito panquecas com geléia fresquinha. Era ela mesma quem viria primeiro, antes de todas, passar as mãos em meus cabelos com a boca pingando mel e as pequeninas mãos melecadas de fruta diria, mamãe, eu vi quando você caiu, agora venha ver que tem uma planta nova que dá pra ver aqui da janela, será que foi aquela que a gente plantou no dia do João pé de feijão no algodão que já cresceu tanto assim? Eu levanto em prantos internos incontroláveis porque ela me viu e me vendo não posso mais fugir de existir. Chá com leite e canela para um dia que estava quase frio. A geléia esta vibrante e quente, a própria fruta adoçou a si mesma. Café preto. O dia estava mais claro e o som acumulava acordados. A mesa posta, as garotas, um talher batendo no outro, era macio aquele alimento. Um bocejo apareceu. Mas era dia, dia vento. Me sento na ponta da mesa, estavam todas mastigando, sabia cada dente. O pré molar, molar, caiu um primeiro, o segundo. Os olhos se fecham pouco a pouco dando trégua à luta de estarem atentos. O terceiro dente. O sono vem, brando, depois profundo, duradouro, daqueles de quem sonha. Os olhos se fecham,  tudo relaxa, dorme, dorme para renovar. Dome para reconectar. Dorme.


Escute. Silêncio.
 

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