sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

O detetive inteligente



Arnaldo tinha uma vida bem organizada. A rotina engessada não incomodava, dava garantias. Cedo começou, cedo conquistou. Agora era só cuidar da manutenção. Via a vida de forma lógica, um engenheiro.  O que ele não esperava é que seu sono, por sonhos insistentes, o tiraria dessa sistemática rotina.
Não sabia bem em que momento da noite acontecia, só sabia que os sonhos o acordavam. Não lembrava bem sobre o que eram, mas tinha algo que o perturbava a ponto de o despertar do sono restaurador costumeiro. Precisava achar a razão dessa desordem.
Primeiro perguntou à esposa se ela notava algo diferente no seu sono durante a noite. Ela, que dormia também muito bem, dissera que não via nenhuma atividade, nem terrores noturnos, nem sonambulismo. Para ela, ele continuava dormindo bem como sempre. Mas ele insistia, pedindo que ela o ajudasse a saber se existiram barulhos na rua ou no apartamento de cima, cujos vizinhos tinham mudado recentemente. Para ela, a rua continuava quieta e os vizinhos não perturbavam.
Arlete, a esposa de Arnaldo, já estava acostumada, quando algo não ia bem, ele a acusava, afirmando que ela não era atenta ao que acontecia com ele. Pedia mais atenção, apoio, cuidado. Ela realmente não prestava muita atenção aos excessos emocionais que ele apresentava quando algo saía do controle. Não era uma questão de cuidado, era simplesmente a vida, que não funcionava como o relógio cuco que badalava na sala de estar de meia em meia hora, pelos quinze anos em que estavam casados.
Ele entrou numa nova fase, assumindo o caráter investigativo. Pegou seu caderninho de anotações e deixou ao lado da cama e passou a anotar os fragmentos dos sonhos que lembrava.  Percebia que tinham algo comum, ele se sentia roubado. Literal como qualquer pessoa sistemática, Arnaldo resolveu cuidar melhor das finanças na empresa em que trabalhava. Suspeitou que pudesse estar sendo passado para trás por alguém. Trabalhou durante algumas semanas até mais tarde e pegou um pequeno deslize no seu trabalho, ele não tinha sido tão rigoroso em um determinado período. Não lembrava o que acontecera, mas deixou escapar algo e se sentiu mal por isso. Não disse nada a ninguém na empresa, mas desabafou com Arlete, que não notou nada tão grave no ocorrido.
Mas os sonhos continuaram e a perturbação de Arnaldo aumentou, afinal, o que era essa insistência? Resolveu investigar um pouco mais, foi ler sobre sonhos e o que eles queriam dizer. Aprendeu um pouco, resolveu que já tinha dominado o que necessitava desse assunto. Ele agora se dedicava durante o dia ao trabalho com mais rigor. À noite, chegando em casa, lia sobre sonhos e fazia conjecturas sobre o que tinha sonhado. E, indo para cama, fazia todo um preparatório para dormir bem, tomando diariamente chá de ervas, e deixando o bloquinho bem disponível para anotar o que tivesse sonhado. Aproveitou e colocou o abajur ali, para ser ligado ao acordar e assim não esquecer o que tinha vindo durante o momento do sonho. Ele realmente se dedicava a ele mesmo.
Arlete acordava sobressaltada, com as atitudes de Arnaldo ao ser tomado por um sonho. Ele agora era o perseguidor dos sonhos, pois não poderia deixar nenhuma informação escapar. A paciência dela diminuía e a vida deles se transformou nessa maratona investigativa. Poucos programas sociais, poucos assuntos que não se centravam no problema de Arnaldo.
Arlete resolveu entrar na aula de dança de salão, coisa que sempre quis fazer, mas Arnaldo não queria. E, aproveitou que ele chegava do trabalho e mergulhava nos livros, para escapar e poder realizar esse desejo. Ela dançava três vezes por semana, se sentia bem. Arnaldo não se importava muito com isso, acreditava no relacionamento livre, em que os dois deveriam ter momentos para fazer o que quisessem. Arlete queria mostrar os passos novos de dança quando chegava em casa, mas Arnaldo não estava muito interessado. Olhava, mas não a via dançar.
Num jantar em que estavam juntos, Arnaldo disse para a esposa que os sonhos continuavam mostrando que ele estava sendo roubado. Ele começou a se sentir ameaçado por isso, pensando que talvez a casa estivesse sendo vigiada, que algum ladrão entraria a qualquer momento, ou pior, que o dinheiro do banco sumiria. Respondendo prontamente, ele aumentou o sistema de segurança da casa e criou uma relação mais próxima com o gerente da conta, para ter um aliado dentro do banco. Esse novo sistema atrapalhava Arlete, pois ela perdia tempo na rua desativando o tal alarme. Além dos possíveis bandidos, ela também tinha sido colocada para fora de casa.
O tempo passou, os sonhos insistiram. Arnaldo desistiu de investigar. Apresentava um semblante cansado, desanimado. Os cabelos brancos apareceram e ele mostrava menos interesse em tomar conta dos mínimos detalhes do trabalho da equipe. Um dos colegas de Arnaldo, durante o cafezinho habitual, comentou, de gozação, que ele parecia um homem desquitado, pois estava com cara de mal-amado.  Isso deu a pista que faltava para Arnaldo, o negócio era com Arlete. A cabeça dele começou a rodopiar, teve certeza que ela estava tendo um caso com alguém. Ela andava mais arrumada, se maquiava, estava mais magra, usava salto com mais frequência. Era isso, ele estava sendo traído. Mas, como se considera um homem da razão, não quis abordá-la sem provas, decidiu contratar um detetive, afinal, Arlete podia notar alguma mudança na conduta dele. Não perguntou aos amigos, não queria passar por corno, mas achou na internet uma agencia de investigação. Marcou uma reunião com Otávio Júnior, o investigador particular indicado para os casos extraconjugais. Na conversa, quando perguntado sobre a rotina da mulher, não sabia bem ao certo o que ela fazia durante toda a semana. Existiam muitas brechas de tempo sem que ele pudesse indicar o paradeiro dela. Otávio Júnior o tranquilizou, dizendo que descobrira tudo e o informaria. Arnaldo ficou satisfeito com a postura do investigador, que não falou muito, mas fez as perguntas certas para ele.
Três semanas se passaram e nenhum telefonema do detetive. Arnaldo ligou para ele, mas não conseguiu falar, deixou um recado. Arnaldo foi se incomodando, pois ligava todas as tardes e nada. Como não tinha pagado pelo serviço, decidiu que daria uma canseira nele também quando fosse acertar o pagamento, na entrega das provas.
Às noites, chegando em casa, Arnaldo observava Arlete nos mínimos detalhes, percebia que ela estava cantarolando com mais frequência, com o olhar perdido em devaneios, sem se importar mais com ele. Para chamar-lhe a atenção, ele batia portas, perguntava sobre tudo, estava furioso com a atitude de desinteresse da mulher. Resolveu investigar por conta própria, remexeu nas coisas dela, não achou nada muito significativo. Olhou na estante, alguns livros novos, mas nada demais, só assuntos de dança. E ele começou a imaginar que deveria ser alguém da escola de dança, na certa algum garotão, professor, que fazia graça com todas as alunas. Numa atitude astuta, segundo ele mesmo, resolveu acompanhá-la um dia na aula. Ela topou em maiores constrangimentos, ele ficou cismado, mas não falou nada. Foi, viu a aula, gostou, mas sentiu muito ciúmes dela, dançando, solta, rindo. Percebeu que nunca tinha sentido tanto ciúme assim, nem quando namoravam e ele tinha medo do Pedro Paulo, o vizinho de Arlete que jogava futebol e chegava suado dando beijinhos nela todas as vezes que estavam juntos.
Foram para a casa e no dia seguinte Arnaldo ligou para Otávio Júnior logo pela manhã, perguntando da investigação. O detetive, que nesse dia atendeu, disse que não tinha encontrado nada, passou a rotina completa dela por email e disse que ele devia apenas os custos gastos durante o trabalho, com gasolina e material de impressão fotográfica. Arnaldo descansou ao ouvir isso, pagou o que devia ao investigador e chegou em casa com flores para Arlete. Ela recebeu, agradeceu, mas nem colocou em vaso. Ele se ressentiu, queria uma festa por estar dando flores a ela, e ela nem se importava. Pediu mais atenção, como um menino mimado, e ela deu, colocando o vaso na mesa durante o jantar.
Os sonhos continuavam e agora tinham um caráter mais forte, mais intenso, com assaltantes frente a frente com Arnaldo, com armas na mão, facas, as ameaças ficaram mais violentas. Arnaldo não aguentava mais, ele precisava ver com os próprios olhos essa rotina da Arlete.
Na manhã seguinte, saiu como normalmente para o trabalho. Chegando ao escritório, disse que iria a uma reunião na parte da tarde e aproveitaria para almoçar na rua. Saiu sem levar muitas coisas, foi de carro até a sua casa e ficou olhando para a porta, esperando qualquer movimento de Arlete. Foram cerca de duas horas esperando, quando viu um carro parar na porta, de lá desceu um homem, que tinha um jeito familiar, mas daquela distância ele não conseguia dizer quem era. O homem tocou a campainha e foi recebido com beijos e abraços. Arnaldo ficou em choque. Não sentia raiva, só medo, pavor, ficou atordoado, desesperado. Arlete fechou a porta e seguiu no carro daquele estranho, ou melhor, daquele sabes-se lá quem. Arnaldo, num ato impensado, seguiu os dois. Pararam há três quadras dali. O lugar era conhecido, era perto do escritório de Otávio Júnior. Nessa hora Arnaldo teve um estalo, era o detetive. Viu o casal sair do carro e subir para a sala comercial que ficava no décimo andar. Arnaldo seguiu-os, sem nem pensar o que iria dizer ou como fazer.  Queria chorar, queria gritar, não sabia o que fazer, não queria perder Arlete, mas queria matar aquele desgraçado que tinha roubado a sua mulher. Chegou na porta e a esmurrou com toda força que tinha. Otávio Júnior abriu a porta assustado, sem saber o que ou quem poderia ser. Arlete se sentou como se fosse uma cliente. Quando ele abriu a porta e viu Arnaldo, disfarçou, fingindo surpresa, como saudaria um antigo cliente. Arnaldo saiu de primeira dando um empurrão e um soco na cara do rapaz. Olhou para Arlete, pegou no braço dela e saiu a arrastando pela sala. Não disse nada, não tinha o que dizer. Chegaram em casa, ele chorou, chorou a noite toda. Arlete ficou na sala, dormindo no sofá, sem querer olhar na cara dele.
No dia seguinte, pela manhã, ela preparou o café e ele se sentou para conversarem. Ele perguntou sobre o porquê da traição e ela disse a verdade, porque ele tinha se ausentado demais.  Ele não conseguia entender e ela não se preocupava com isso, apenas queria dizer a verdade, não queria mentir, porque ele era parcialmente responsável por aquilo, primeiro, por deixá-la tão sozinha por tanto tempo, preocupado com as mínimas coisas da vida dele, incluindo os sonhos perturbadores. E segundo, porque ele colocou aquele homem no caminho dela, afinal, ele tinha contratado um homem para olhá-la, ouvi-la, acompanhá-la, durante todo o tempo que ele não estava lá. Se ele quisesse culpar alguém de traição, deveria começar por si mesmo, depois poderiam conversar sobre o caso.
Arnaldo não aceitava, continuava reto e rígido como sempre. Mas também percebeu que amava muito aquela mulher, que seria incapaz de deixá-la, mas também incapaz de perdoá-la. Teria que conviver com a desconfiança perturbadora dos sonhos para o resto da vida.
Não passou pela cabeça dele perguntar o que ela queria. Ele ficou no quarto, durante todo o dia, pesando o que ele faria. No final da tarde, Arlete entrou e anunciou que ela passaria um mês fora, na praia, com a tia, para pensar o que ela queria fazer. Ele se surpreendeu, pois nem tinha se dado conta de que um casamento é feito de dois e se ela quisesse ir embora, podia, não dependia só dele. Ele não tinha como dizer sim nem não para o caso. Pediu que ela ficasse, ela disse que não, mas que voltaria.
Ele pensou, sentiu falta, imaginou-se sem ela. Ela pensou, sentiu falta, imaginou-se sem ele.
Ao fim do período de recesso, ela voltou para casa e tiveram a conversa mais franca da vida deles. Todas as verdades foram colocadas na mesa, os desejos, os medos, as dificuldades, a paixão. Resolveram retomar o casamento, mas com novas regras, num novo acordo. Arnaldo deveria pensar que a vida deles não era um roteiro. Além disso, ele não era o personagem principal e ela coadjuvante. Deveriam ter papeis com a mesma proporção ou não seria mais a história deles. 
Ele se deu conta do quanto ele pensava na vida só pelo ponto de vista dele. Foi difícil, se esforçou, se adaptou, não ficou perfeito, mas ficou melhor.
Numa manhã de domingo, enquanto tomavam café juntos, Arnaldo disse a Arlete que ele não sonhava há mais de um mês, que toda aquela situação reformulou a mente dele. O maior medo foi vivido e agora ele não precisava mais se proteger disso.

Simone de Paula - 06/01/2017




Inspirado na vida cotidiana de casais e no filme 'Um corpo que cai', de Alfred Hitchcock

Nenhum comentário:

Postar um comentário