sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

As voltas que a vida dá

Eugênia tinha sido criada para ser assistente. Desde pequena, mesmo seguindo os mesmos passos dos irmãos mais velhos, não tinha o mesmo lugar que eles tinham em casa. Estudou, mas a mãe pedia para ela ajudá-la com as tarefas domésticas. Brincava na rua com os vizinhos, mas tinha hora para dormir e nunca saía sozinha com alguma coleguinha. Ia a parques e clubes, mas sempre acompanhada deles. Mesmo tendo algumas ideias de passeios ou brincadeiras, não era levada em conta, pois eles faziam valer a vontade deles. Eram unidos, os pais gostavam disso, pois os meninos tomavam conta dela. A mãe de Eugênia, dona Estela, não acreditava que a filha era muito esperta para o mundo, a achava muito pura, inocente, não saberia dizer quem é bom e quem é mau, e os meninos serviriam de escudo para ela.
Com 19 anos, Eugênia começou a namorar Eduardo, colega de faculdade. O namoro foi como dona estela esperava, com muito contato com a família e muitos planos para o futuro. Eduardo se encarregava de Eugênia, tanto financeiramente, como nas orientações para a vida. Após 3 anos de namoro, noivaram e prepararam o casamento. Eugênia se preocupava com vestido, louças e objetos de decoração. A mãe pensava na recepção após a cerimônia religiosa. O pai de Eugênia, só queria saber que horas teria que entrar na igreja levando a noiva e do vinho da festa. Tudo correu como planejado e Eugênia não teve que se preocupar muito com coisas mais complicadas e burocráticas, pois Eduardo sabia de tudo.
O tempo passou, os três filhos vieram, dois meninos e uma menina, como a mãe. Eugênia vivia bem, feliz, tranquila. Cuidava da vida do marido e dos filhos, organizava tudo e sabia que podiam contar com ela. Apoiava o marido nos problemas da empresa, o ajudava em lidar com as crises com funcionários ou com o chefe, auxiliava os filhos na lição e os preparava para a vida.
Eugênia, no alto dos seus cinquenta e três anos estava tranquila em casa, comemorando mais uma conquista do filho mais velho, João, que tinha trocado de emprego e iria morar fora, quando recebeu um telefonema chocante. Eduardo tinha sofrido um ataque cardíaco e tinha sido fatal. A surpresa foi tanta que nem as lágrimas caiam como de costume em situações de óbito. Já tinha perdido pai e mãe, mas o marido era tudo que ela tinha, era seu grande apoio na vida. Os filhos tinham a vida deles e ela se sentiu na maior solidão da sua vida.
Evidentemente Eugênia não sabia de nenhum trâmite em situações de óbito. Deixou para os filhos essas questões. Depois, algum tempo passou e foi Edson, o filho mais jovem, advogado, que cuidou do processo de inventário e herança. E foi nesse momento que todos se surpreenderam, pois Eduardo tinha feito um testamento com tudo muito especificado. Ele deixava os bens para a esposa e filhos. Tudo seria dividido como manda a lei. Mas ele tinha uma casa fora do Brasil, no Uruguai, herdada de um tio, que Eugênia nunca tinha tido conhecimento. E, essa casa pertenceria à Eugênia, que deveria ir viver lá, sozinha, criar uma nova vida para si. A casa do Brasil deveria ser vendida e dividida e essa renda, adicionada da pensão que ele deixara, seria o suficiente para ela se manter financeiramente. E, essa casa deveria ser deixada, na morte dela, para o primeiro neto que tivessem, não importando se fosse menino ou menina. O futuro da casa, caberia então ao novo herdeiro, ele não queria prever isso, só queria um destino novo para Eugênia. Ela se assustou, rejeitou a proposta, disse que não saberia nem como ir para lá. Edson disse que a ajudaria com mudança e tudo mais, mas ela não se via nem em outra casa no Brasil, quanto mais no Uruguai. Passou uma semana dormindo e comendo pouco, sem falar com ninguém, completamente aflita com a situação. O filho alertava que era preciso dar encaminhamento ao processo, pois o prazo expiaria e eles teriam que começar de novo e teriam novos custos um novo inventário. A filha Adriana, que não tinha se pronunciado ainda na situação, resolveu abreviar essa indefinição da situação. Comprou uma passagem para Montevidéu, para a mãe ir sozinha e conhecer o país, o bairro, a casa. Chegou e disse que era a única forma dela pelo menos realizar um pedaço do desejo do pai. Eugênia, que tinha amado muito o marido, entendeu que a filha tinha razão e aceitou finalmente. Todos a acompanharam ao aeroporto, mas dali era com ela. Outro país, outra língua, ela não saberia o que fazer sozinha. Mas foi, pensava em Eduardo ao seu lado o tempo todo. Brigava com ele por não ter contado nada, mas depois fazia as pazes. O manteve vivo para conseguir seguir essa viagem. Chegou, achou tudo muito simpático. Encontrou um motorista que tinha sido contratado pelos filhos para levá-la até Colônia do Sacramento, cidade onde estava localizada a casa. De Montevidéu, seguiu viagem por duas horas e quando percebeu o lugar, ficou encantada. Uma cidade pequena, com casas de pedra, ruas estreitas e um clima de filme. Soube durante a viagem que a cidade beirava o Rio Del Plata, que fazia divisa com Buenos Aires capital da Argentina. Se quisesse, em uma hora poderia ir até lá fazer um passeio. Parada no portão da casa, com a mala na mão, olhou tudo e sentiu novamente o amor que tinha pelo marido, aquele deveria ter sido o refúgio deles quando ele finalmente se aposentasse. Ela entendeu porque ele não tinha dito nada, pois seria um presente para a velhice. Caminhou até a padaria da esquina e perguntou por Pablo, que deveria ter a chave da casa. Ele a cumprimentou com muita afetividade e a acompanhou. Abriram o imóvel que estava vazio, mas muito limpo. Além das chaves, ele também entregou uma carta a ela, que tinha sido deixada por Eduardo no caso dela chegar sozinha. Dispensou o motorista, agradeceu Pablo, abriu as janelas, sentou-se no quintal gramado e abriu o envelope. Eduardo contava a história daquele tio de quem herdara a casa. Aquele tinha sido o ninho de amor dele e daquela que foi sua mulher por anos. Após a doença dela ele não quis mais ficar na cidade e se mudou para Buenos Aires e queria que um dos filhos do irmão ficasse com a casa. Como sabia que ele e Eugênia viviam muito bem, acreditou que o amor deles merecia ser homenageado e Eduardo concordava com o tio. Disse que deixou a casa vazia para ela decorar como quisesse que ela era livre e muito capaz de transformar aquele ambiente na casa dela, sem palpite de ninguém. Que ele queria que ela conversasse com ele quando tivesse dúvidas, mas que era para deixar o Brasil para trás e renovar sua vida ali. Os filhos a visitariam e isso seria ótimo, mas eles tinham a vida deles e não precisavam mais dela.
Eugênia respirou fundo, ficou horas olhando cada cômodo da casa e imaginando o que faria ali. Foi até a padaria e perguntou se Pablo tinha uma bicicleta, que ela queria conhecer a cidade. Circulou e já foi se reconhecendo ali, mais livra, vive e renovada do que imaginava. A noite caiu e ela ligou para o filho, dizendo que não voltaria ao Brasil. Pediu que se desfizesse de tudo, vendesse, doasse, o que fosse preciso. Que na assinatura da venda, ela queria uma visita dos três juntos para verem o seu novo lar. Estava mais segura do que nunca na vida.
Seis meses depois estavam lá João, Edson e Adriana acompanhada de Fernando, o namorado com quem morava e ainda portava uma bela barriga de cinco meses de gravidez. Eles já tinham recebido fotos da cidade, da casa, da nova vida da mãe, mas não imaginavam como ela tinha feito tudo sozinha. Ela assinou os papéis da venda da antiga casa e deixou com Edson uma procuração caso precisasse de mais alguma coisa. Mostrou que a casa tinha espaço para todos, mas que eles deveriam se misturar, pois era a casa dela e eles viriam sempre como visitas, hóspedes.  Ficaram por ali cinco dias. Aproveitaram o tempo com a mãe e ela com eles, mas ela já estava ansiosa para voltar a ficar só. Tinha descoberto os prazeres de ter sua vida só para si.
Nasceu a neta Gabriela, que ela só conheceu quando foram lhe visitar três anos depois. Já disse para a menina que aquela casa seria dela quando crescesse e que poderia morar ali se quisesse.  Mesmo com o contato constante com os filhos, Eugênia não pertencia mais ao antigo mundo. Ela falava mais o espanhol do que o português costumeiro. Tinha novas amigas e novos romances. Cuidava da casa e de si de forma diferente, era outra. Se deu conta que não lembrava de Eduardo com tanta frequência, que ele não fazia mais parte daquela nova Eugênia e nem da vida no Uruguai. Ele organizou tudo para poder deixá-la só para si e conseguiu.  Ela ainda o amava, mas agora de outra forma, mais branda, mais serena, como alguém que fez parte da nossa vida, causou uma revolução, mas que depois do caos, não precisa mais permanecer ali, pode deixar de existir, pois foi só o principio da mudança.

Simone de Paula  - 09/01/2017


Conto inspirado no filme argentino ‘Dos Hermanos’ , de Daniel Burman

Nenhum comentário:

Postar um comentário