"Se meu casamento
acabar, não terá sido por um outro homem, mas por uma outra mulher."
Era assim que ela
pensava, porque tinha sido fiel a tudo e a todos a vida inteira. Era comprometida com
o lugar da boa aceitação familiar. E como parte desse papel bem planejado,
conheceu o rapaz que aceitaria fazer uma dupla com ela.
Casaram, construíram
família. Tudo ia bem, justamente quando essa frase começou a ser usada para
lembrá-lo de que era proibido trair. E o marido, que nem pensava em outra
mulher, visto que se ocupava em 'vencer no trabalho', se sentia culpado cada vez
que uma mulher o interpelava. A esposa lia Nelson Rodrigues e fazia questão de
contar para ele como a 'tentação' podia estar onde menos se espera. Ela se sentia
segura em demarcar cada passo que ele dava com seu olhar perseguidor. Mas
esquecia de observar seus próprios desejos que deslizavam pelo imaginário
erótico disponível na literatura. Era Emma Bovary com medo de ceder. Mas o corpo, cheio de libido,
gritou! O coração começou a bater forte, uma onda de calor lhe invadiu o
rosto e o peito. Ela precisava sentar para não cair. Com toda prontidão de quem
sabe o que fazer com os problemas da vida, marcou a consulta com o clínico
geral. Este fez exames e nada constava, mas era melhor procurar um cardiologista.
Mais uma série de exames e nada. O cardiologista sugeriu um
endocrinologista, poderia ser algo hormonal. Mas não era, e a possibilidade da
menopausa precoce a levou ao ginecologista. Não, ainda não era isso, demoraria
alguns anos para essa nova condição. Mas a sensibilidade do ginecologista foi
maior que a dos outros especialistas e ele sugeriu um analista.
Ela se assustou,
como poderia ser levada ao analista por causa de uma taquicardia. Rapidamente
se aprumou e fingiu ser uma mulher avançada e bem informada. Topou a
sugestão, sem demonstrar que era a contragosto.
A primeira sessão
foi estranha, ela não sabia direito como fazer. Ali, ela não tinha experiência.
Pensou que deveria ir deitando no divã, mas o analista a orientou a sentar na
poltrona e contar porque ela o procurou. Ela contou da taquicardia e da visita aos
médicos. Comentava e criticava a cada um deles, definindo o erro de cada um. O
analista ouve o relato até o final, levanta-se indicando o momento da
despedida, coloca a mão na maçaneta da porta e pergunta: "E o meu erro, qual foi?" Ela se assusta.
Que surpresa! Como poderia ela lhe dizer na cara uma coisa dessas? Como poderia
ele ser tão invasivo? Ela diz: "não posso responder", no tom mais baixo em que
falou nos últimos 20 anos. Ele se despediu e disse que a veria na
próxima semana.
As sessões
transcorriam, a taquicardia diminuía, mas os calores, não. Ela se sentia bem em
frequentar o analista, mas ainda se sentia invadida com a pergunta que insistia em sua cabeça: 'e meu erro, qual foi? Desde o início do tratamento, usava todo
o tempo que tinha tentando limpar sua barra, falando de assuntos que provavam
que ela não era tão crítica, que ela confiava nas pessoas, que ela não tinha
controle de tudo e, principalmente, que ela respeitava os homens. Falava muito
do marido e o quanto ela o admirava por colaborar com ela, especialmente nesse
momento da doença. Ela não deixava escapar a palavra que vinha na ponta da sua
língua todas as vezes, não soltava a frase: 'ele me obedece', mas sabia disso.
Um dia, atarefada
que estava com os preparativos do aniversário da filha, esqueceu de ir à análise.
Quando ouviu o relógio da sala badalar, lembrou que aquele som indicava um fim
de uma sessão em que ela faltou. Ela errou.
Atormentada com a
culpa pela falha, mandou mensagem para o analista, que não respondeu. Na semana
seguinte, passou a sessão se justificando. E, uma semana depois, quando ela ia
começar a ladainha das desculpas, ele encerrou a sessão com uma observação serena:
todo mundo erra.
Ela saiu furiosa,
não aguentava mais esse tipo de postura dele. Sentia como uma falta de
compostura ele a provocar desse jeito, com esse ar de superioridade.
Chegou na sessão
seguinte e foi logo dizendo: seu erro é invadir minha privacidade! O analista
sorriu e disse: ótimo, deite-se no divã e vamos começar.
Ela pareceu tirar um
dragão do peito. Seguiu falando de coisas que antes ela nem pensava. Não tinha
mais preocupações em manter tudo no lugar, muito menos a vida do marido e da
filha.
Um dia, chegou e disse que o marido tinha lhe dito que ela não dizia há muito tempo que
o casamento, caso acabasse, seria por
causa de outra mulher. E ela se dava conta que o casamento não existia há
muitos anos. Que aquela relação estava soterrada, que era preciso fazer algo
com isso. Seguiu mais um longo tempo discutindo questões sobre si, sem nem
tocar no casamento novamente.
Numa tarde chuvosa
ela chega chorando muito. A briga com o marido tinha sido muito violenta, ela
não tinha tido forças para convencê-lo a ficar. Não sabia como voltar a ser
como antes. E ouviu do analista a frase que representava uma revelação sobre si
mesma e a constatação de ter realizado um desejo que existia há tanto tempo
dentro dela: "se o seu casamento acabar, não terá sido por um outro homem, mas
por uma outra mulher." O choro cessou, ela
se levantou e saiu.
Na
semana seguinte, chegou diferente, com uma roupa mais leve, um sorriso
tranquilo e um pedido legítimo: sou outra mulher e
quero um outro homem. Será que meu marido conseguiria assumir esse lugar?
Simone de Paula - 16/02/2016
Inspirado em "Do amor louco e outros amores", de Ricardo Goldenberg e "Palavras por dizer", de Marie Cardinal.
Simone de Paula - 16/02/2016
Inspirado em "Do amor louco e outros amores", de Ricardo Goldenberg e "Palavras por dizer", de Marie Cardinal.
Uau! Adorei. Me deu vontade de acompanhar as sessões dela, de fazer perguntas, de tomar um café qualquer dia...
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir