terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Na tentativa de seguir...

Nora chegou à cidade e teve certeza que escolheu a melhor época do ano - outono. Caminhava pelas ruas em direção ao museu e tinha a impressão de estar em uma pintura. As cores que tomavam a cidade eram todas quentes. Cores que ela passou a vida inteira a perseguir. Realmente passou uma vida em vermelho, laranja e dourado. Programou essa viagem inúmeras vezes na sua imaginação, talvez, a partir do dia que entrou em contato com a pintura. Tinha treze anos e resolveu fazer aulas de pintura no colégio na tentativa de evitar horas livres em casa na companhia de um irmão chato. Não aguentava mais aquela relação, onde sempre levava a pior e acreditou que passar mais tempo na escola resolveria o problema. Não seria mais o alvo do irmão que na época atirava sua raiva e frustração em quem estivesse por perto. Se seu irmão era marcado pela raiva e agressividade, na primeira aula de pintura percebeu que sua marca seria a cor. Ela passou a tentar alcançar as cores em todos os lugares e momentos, até mesmo nos rompantes do irmão. É como se ali ela tivesse ganho seu filtro. Era a partir das cores que experimentaria tudo.

Caminhando até o museu, recordou essa cena inicial com a pintura, as cores e pensou no irmão. Ele tinha sido de alguma forma o responsável por ela ter encontrado a sua arte. E, também, pensou em quanto a vida do irmão lhe tinha ensinado sobre algumas cores e sombras: o escuro, o preto, o cinza e no fim, o vermelho, que tomou conta das últimas cenas da vida dele. Quando chegou ao hospital para tentar entender o que tinha acontecido, o encontrou rodeado de médicos, com seus aventais brancos encardidos, o verde desbotado das paredes e o corpo do irmão como se tivesse sido pintado de vermelho. Estava com o corpo inteiro vermelho, como se o seu sangue fosse uma tinta. O acidente fôra fatal, e ali percebeu que seu irmão sempre havia escolhido essas cores e suas intensidades. Não podia ter sido diferente. Quando Nora chegou em frente ao museu, aquela cena inicial com a pintura já ocorrera há vinte anos. A morte de seu irmão há dez e ela estava com trinta e três e sem cor alguma. Sua pele não era branca, era pálida, era a ausência total de cor.

Entrou no museu sem sua cor e logo reparou como esse lugar era familiar, independente do local do mundo em que estivesse. As cores começaram a chamar a sua atenção. Deu vontade de olhar quadro por quadro, mas sabia que tinha vindo para ver o quadro, um quadro específico. A pintura que a definiu nos últimos dez anos. Antes mesmo de chegar na sala onde a tela estava exposta, sua memória trouxe cenas que havia vivido em função desse quadro. Lembrou da primeira vez que entrou no estúdio do Homem que a ensinaria muitas coisas a respeito de pintura e do viver. Foi exatamente seis meses depois da morte de seu irmão e ela estava transtornada. A morte dele lhe tirava a força de uma época infantil e sendo assim não conseguia mais permanecer aos cuidados do professor de pintura da escola. Um amigo de seu pai disse conhecer um artista plástico de muito talento e se ofereceu para fazer as devidas apresentações. Nesse instante, pensou que o amigo do pai também era responsável por ela ter sua arte. Sem sua influência nunca conseguiria chegar perto do Homem que mudaria tudo, todas as cores.

Chegou na sala onde a tela estava exposta e antes mesmo de se colocar na frente dela, parou para olhar à distância. Havia um grupo de turistas fotografando euforicamente o quadro. E isso fez com que ela ficasse à distância. Primeiro porque não entendia como alguém que pretendia contemplar uma pintura pudesse fazer tanto barulho; segundo que não aceitava como alguém deixava de olhar o original para tirar tantas fotografias que depois nem iria rever; e, por último, percebeu seu nervosismo, sentiu um calor subir pelo corpo e chegar ao seu rosto. Sabia que estava levemente vermelha. Enfim, não era um encontro qualquer, era um encontro com o quadro que permeou os seus últimos anos.

Ainda de longe, lembrou a sua primeira visita ao novo professor. Ela esperava mais compaixão da parte dele, até por imaginar que o amigo do pai lhe tivesse contado a respeito do luto pelo irmão. Mas não. A primeira pergunta que o Homem fez foi: "qual é o traço da sua perda?" Ficou imóvel, não conseguia dizer nada e nem pensar em nada. Com os olhos cheios de água percebeu que não sabia qual era o traço que a morte do irmão tinha inscrito nela, apenas lembrava do vermelho, do sangue. Decidiu responder: "só tenho uma cor, vermelho". O novo professor rapidamente se deu conta que aquela garota não tinha elaborado muito, não havia nenhuma escrita nela a respeito da experiencia da morte, apenas uma mancha. E, delicadamente a levou para frente de uma mesa com todas as tonalidades de vermelho que ela pudesse imaginar que existiam. Diante das tintas ela só pôde chorar. Ele era a primeira pessoa a entender o que se passava nela.

Começou a frequentar o estúdio três vezes por semana de tarde até a noite. Eram dias esperados e mais que isso, desejados. Eram os espaços em que podia viver suas dores e cores. Ela lembrou disso tudo com sorriso nos lábios e com a devida distância que ainda precisava manter do seu quadro. Ela sorriu ao perceber, de forma ingênua, que ali naquele momento de dor com a morte do irmão, achava um lugar para de novo evitar sua casa, que hoje não era povoada por rompantes de raiva do irmão, mas pelo silêncio fúnebre dos pais. As coisas tinham mudado muito, mas as cores para ela continuavam as mesmas.

Os turistas se afastaram e ela precisava chegar perto do quadro. Tinha uma dívida diante dessa obra, essa pintura que lhe ofereceu tanto. Nunca poderia deixar de fazer reverências a essa tela. Quando olhou de frente o quadro era como se tivesse diante do espelho. Aquelas cores, traços, os amantes, a moldura, tudo fazia parte do que ela tinha se transformado. O gosto do vinho na boca, a música, as risadas e os corpos enlaçados tomaram seus pensamentos, como se estivesse vivendo aquele dia em que viu pela primeira vez o quadro. Permanecia hipnotizada, como no passado, pelo erotismo que estava retratado ali. Era a primeira imagem de vida, depois de tantas de morte que olhou e pintou. Aquele quadro representava a possibilidade de viver. Chegou a fechar os olhos e ouvir a voz do Homem que lhe apresentou o quadro: "quando você estiver na frente desse quadro a única coisa que te peço é que me dedique suas lágrimas". Elas, as lágrimas, vieram imediatamente. Seu pranto silencioso diante de uma obra que a recolocou na vida. Quanto à dedicatória, não sentia que poderia fazer. Não poderia dar lugar a um outro antes de dar lugar a si mesma. Ficou com as suas lágrimas e suas lembranças.

Carla 23/02/2016

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