Ao ouvir o apito e o fechamento das portas do metrô, Juliano
parou de correr para tentar pegar aquele trem. Não estava atrasado, mas tinha o
hábito de se adiantar sempre que possível.
A manhã tinha sido como todas as
outras: acordar, ir ao banheiro, tomar banho. Esquentar o café com leite no micro-ondas e comer o pão com manteiga que tinha trazido na noite anterior.
Morava sozinho. Veio do interior do estado para fazer faculdade. Era um cara
normal, até mesmo banal.
Olhou para a linha do trem, ansioso. Queria ver os faróis
acesos do próximo, no qual ele embarcaria. Chegou. Embarcou entre o
empurra-empurra típico daquele horário. Como ele estava bem na frente da porta,
conseguiu um lugar para sentar. O banco era duplo e, a seu lado, estava um
sujeito bem espaçoso, que parecia ser aquele tipo que briga por tudo. Sentou
bem no canto do banco para nem encostar e não provocar ira no vizinho de
assento.
Sentiu um cutucão no braço, olhou e viu que o sujeito do lado o
observava e já foi logo falando.
- Você é o Juliano, né? Lá de Lins, não é?
Juliano se surpreendeu e parecia ter sido pego num ato
proibido. Ficou branco, sentiu um gelo na barriga e respondeu que sim com a
cabeça. Viu estampado na cara do outro um sorriso largo de reconhecimento. Não
gostou. Mas foi obrigado a continuar ali, não podia fugir, mas sabia que os
pensamentos e lembranças que começavam a chegar na sua cabeça indicavam perigo.
Teve medo.
O outro continuou:
- Lembra de mim? Sou o Rick. A gente estudou juntos lá na
Escola Monteiro Lobato. A gente se divertia naquela época, né?
Juliano pensou: ‘você se divertia, eu sofria’, mas não disse
nada, só assentiu com a cabeça, fazendo o mínimo de gestos para não
mostrar o medo, que agora estava escancarado nos olhos fixos e
arregalados.
E Rick continuou, dando um tapa no ombro de Juliano:
- Cara, tô morando aqui faz uns 10 anos. E você?
E sem esperar resposta, continuou:
- Vida dura, não aguento mais, esse metrô lotado, essa gente
te empurrando, e nada de grana...
Juliano se esforçava para não ter os pensamentos que
chegavam feito um furacão na sua cabeça. Lembrava do horário do recreio, e da
fome que sentia porque tinha seu lanche roubado. Começou a sentir vontade de
urinar, queria sair dali, e o metrô andava, mas nunca chegava na estação. Não
sabia se ia levantar e descer na próxima, pois as pernas não agiam. E a pergunta fatídica veio da boca de Rick:
- Tá indo trabalhar? Desce em qual estação?
Juliano não podia mentir e disse:
- Conceição.
A alegria de Rick produziu mais desespero em
Juliano.
- Que bom, tá longe ainda, nem chegamos na Vergueiro, dá pra
bater um papo, colocar a conversa em dia.
Juliano se odiou como fazia todos os dias de sua vida,
quando queria mentir e não conseguia por medo e por falha naquela cabeça
apavorada que tinha. Passou alguns minutos se xingando e se culpando por ter
que seguir mais um longo trecho ao lado de um de seus maiores inimigos.
Lembrou-se de Rick quando criança. Menino cheio de
personalidade e maldade. Fazia com Juliano o mesmo que todo moleque faz,
inventa papéis de quem manda e quem obedece e se acredita poderoso. Isso passou
para ele, hoje era o obediente que sempre achou que não seria, mas isso nem
passava pela imaginação de Juliano. Naquele momento, lado a lado, Juliano
sentia o medo que relembrava sua fraqueza, mesmo que nem lembrasse da
sua força.
Não conseguia ouvir o que Rick dizia, e nem
perguntava nada. Passou aquele longo tempo olhando os lábios do colega mexer, evitando olhar em seus olhos. Estava apavorado, mas tentava se controlar.
Não tinha cabeça para se lembrar de quem era hoje, nem que tinha crescido e nem
que o colega não o ameaçava mais. Estava fixado, parado, no passado.
Rick percebendo que Juliano cada vez se encolhia mais no
banco, perguntou:
- Cara, você tá bem? Você tá esquisito. Vamos descer e você
toma um ar, esse vagão tá lotado.
Foi pegando no braço de Juliano que já sentia que aquilo, que
sempre imaginou, fosse acontecer. Já sentiu socos e pontapés, já pensava nos
seus dentes caindo, sangue escorrendo, o barulho dos ossos quebrados.
Rick, foi gritando:
- Dá licença aí, pessoal, meu amigo vai vomitar!
Caminho aberto rapidinho e Rick saiu do trem, carregando
Juliano pelo braço e rindo. Juliano já estava quase desfalecendo, aquela risada
era o sinal de que Rick acabaria com ele.
Rick soltou Juliano e continuava gargalhando. Juliano parou
e olhou o colega ali, rindo, meio bobo, meio moleque, não estava nem mais tão
perto dele e resolveu ouvir o que o outro estava dizendo:
- Essa gente morre de medo de vômito, né? É falar que alguém
vai vomitar, todo mundo corre.
Juliano respirou e lhe veio à mente que ali não tinha mais nada, nem
força em um, nem fraqueza em outro. Eram dois homens comuns, que se
reencontraram depois de tantos anos. Ficou surpreso em ver que o outro não o
odiava e parecia nem lembrar de quão idiota tinha sido na infância. E, que
tinha sentido um medo tão forte, que nem teve a chance de saber o que o outro
fez da vida. Percebeu que não tinha mais medo, tomou coragem e perguntou:
- Cara, quer tomar um
café?
Simone de Paula – 04/02/2016
Conto inspirado numa cena urbana, reproduzida nesse guache de Leandro Robles