sexta-feira, 15 de março de 2019

Na ponta dos pés

Segui os passos como o combinado.Cheguei e toquei a campainha. O porteiro me fez a pergunta esperada, pedindo para eu me identificar. Usei o código formal, nome e destino. Ele conferiu as informações e me deixou entrar. Ele nunca tinha me visto ali, mas ainda assim me perguntou: você sabe onde é? Respondi que não, afinal, era um momento inaugural. As coordenadas: segue aqui, entra na porta à esquerda e pega o primeiro elevador à direita. No hall, seguindo as instruções, subi ansiosa para o nono andar. Olhei as portas, conferi o número e toquei a campainha. A porta se abriu e um sorriso convidativo me chamou a entrar. Mas as palavras foram: te esperava na outra porta, você entrou pelos fundos. Caminhei pelo apartamento, passando pela cozinha. Os pés tentavam levitar um pouco para não amassar o chão. Estranho. Por que eu parecia querer evitar a gravidade para não marcar aquele lugar? Entrei na sala e um tapete branco, volumoso, esperava pelos meus pés. O convite para que eu sentasse exigia atravessar aquela cobertura imaculada no chão. Pisei,. Meus pés afundaram, senti quase um arrepio. Não era a sensação gostosa, macia, do pêlo delicado da tapeçaria, mas a certeza de que eu trazia sujeira. Estava de sapatos, vinha da rua, restos do asfalto e lixo compartilhado na grande cidade. Engoli corajosa aquela contrariedade que habitava meu peito. Sim, eu marcava o tapete com meus pés. Se a sola estava suja, não era isso que aparecia ali, mas a força da gravidade, a intensidade da materialidade do peso do meu corpo sobre uma superfície plana. Sentei na beira do sofá. O couro áspero se fez sentir sob as palmas da minha mão. Me acomodei mais um pouco, apoiando meu quadril no encosto. Mais uma vez as mãos acariciaram o tecido do sofá, que tinha textura e frieza. Apoiei minhas costas, relaxei ombros e cabeça. Meu corpo não suja o sofá, minhas mãos não marcam o assento, mas porque meus pés marcariam tão definitivamente o chão? Me perdia nesses pensamentos enquanto tentava manter a conversa com minha anfitriã. Ela perguntava e eu respondia, comentava, mas dentro de mim outra falava, sentia, julgava. Quis me livrar de estar vivendo aquilo ali, não pelo ali, mas pelo aquilo. Não tinha como voltar, agora era hora de seguir em frente. Recebi mais uma instrução: tire os sapatos, siga para a sala à direita, ali no corredor. Cheguei lá depois de uma breve parada no banheiro, como forma de interromper a angústia dos pés sujos, agora descalços, limpos, mas ainda pesados. Pés pesados, que curioso isso, nunca tinha colocado a coisa assim, lado a lado. Mais um comando: sente, vou te conhecer. Com gestos silenciosos, o reconhecimento dos corpos se fez. Ela não me disse o que meu corpo é em mim. Mas, depois de um longo tempo, intervenções inesperadas, pensamentos atravessados pelo grande movimento de ar produzido pela respiração, alguma coisa pude conhecer de mim no meu corpo que antes eu nem tinha ideia. Saí de lá sem pensar nos pés. Calcei os sapatos, levantei, caminhei. Quando pisei novamente na calçada, o resto de água da chuva, no asfalto sujo de fuligem, me garantiram que sob a sola dos meus sapatos, há muito mais marcas do que eu imagino.

Simone de Paula - 15/03/2019

Um comentário:

  1. Clarice tinha essa narrativa intimista, o fluxo dos pensamentos que se misturam com emoções e sentimentos... um misto de sensações, os sentidos confusos, mas, ao mesmo tempo, presentes. Gosto. Crio imagens pensando onde era o "ali" e o que era "aquilo"... e, isso, me compraz!

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