sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Vestígios

Os plantões eram mais frequentes na vida de Estela. Tinha escolhido a profissão como uma forma de viver. Independente, morava sozinha e não tinha muitas crises com isso. Sabia que durante o trabalho teria tanta gente ao seu redor que o silêncio e a solidão seriam formas de alívio. As amigas do colégio tinham ficado no passado. Muitas casaram e seguiram a vida de outra forma. Os amigos da faculdade, ou estavam como ela, em plantões e solidão, ou tinham montado consultório na clínica da família e curtiam o status que isso traz, sem muita vontade de conviver com quem trabalha mais do que vive.
Chegou em casa cedinho. A noite no hospital não tinha sido pesada demais, mas as horas em estado de atenção a deixavam cansada mesmo assim. Olhou rapidamente o apartamento vazio, limpo, fresco. Sorriu. Entrou no chuveiro e o banho foi um grande alívio. Foi até a cozinha, fez um café, comeu uma fruta, que ainda estava em bom estado, e se preparou para dormir. Seriam umas doze horas seguidas de sono. Já tinha instalado janelas antirruídos para não ter perturbações do barulho das ruas do bairro agitado em que morava. Tinha saído da casa dos pais, num bairro mais tranquilo, almejando estar mais perto do trabalho e da vida urbana. Mas só conseguiu o primeiro, pois do segundo apenas participava do barulho.
Entrou no banheiro, colocou pasta de dente na escova e quando ia leva-la à boca notou um pêlo no canto da pia. Não era cabelo, mas um pêlo pubiano. Um pentelho bem no cantinho da pia. A cabeça deu uma conferida geral em todas as possibilidades: a faxineira tinha limpado a casa no dia anterior, como isso ainda estava ali? Dela não era. Mantinha-os bem aparados, pelo menos com esses cuidados, ela conseguia estar em dia. Nem lembrava quem tinha sido o último cara com quem transou. Fazia mais de um mês que tinha tido uma noite gostosinha de sexo com o cara do aplicativo. Seria dele? Só podia. Teria alguém entrado no apartamento? Talvez. Respirou fundo, olhando fixo para o pêlo. Com a escova na boca, um pensamento passou como uma rajada pela sua mente: se teve alguém aqui, ao invés de levar algo, deixou isso. Foi tomada por um nojinho que tinha quando jovem. Pensava nos homens e no corpo deles com um certo desconforto. Mas agora, era um pentelho na sua casa, na sua pia. Registro da presença de alguém, que não ela. Pegou-o com a ponta dos dedos e jogou no ralo. Mirou, mas não entrou. O pêlo insistiu em se exibir. Abriu a torneira e jogou um jato de água e dessa vez ele foi pelo ralo. Foi pra cama com a mente alerta. Tinha um intruso na sua casa e uma faxineira que não fazia bem a função de eliminar todos os vestígios que ela não queria que fossem vistos. A imagem do pentelho grudou nos seus olhos, não lembrava das transas, mas sentia um desejo aumentando dentro dela. Como podia sentir nojo e ao mesmo tempo querer sexo com o dono do pentelho, seja ele quem for? Imaginava um homem. Não tinha rosto, não dava pra ser identificado, mas tinha corpo. Como achar essa pessoa? Tomada por essa perturbação, virou o jogo da sua mente, fez exatamente o que tinha sido ensinada a fazer: diante do sexo, se feche! Mudou o foco e foi procurar pela casa outros restos de gente. Olhou o chão, notou cabelos e pó. Recolhia cada fio com a pontinha dos dedos, como fez com o pentelho, e ia colocando dentro de um saquinho plástico. De volta ao banheiro, perto do vaso, viu um pedaço de unha. Tentou se identificar com o resíduo. Sim, aquela unha era dela. O modo investigativo, determinado, tomou completamente o lugar do desejo erótico que tinha acelerado seu corpo. Foi encontrando muitos pedaços de corpo espalhados pela casa. Pensou em fazer uma faxina de verdade para acabar com tudo aquilo, aquelas pontas soltas, fragmentos do passado, verdadeiros fantasmas. Se sentiu assombrada com os micro pedaços humanos, partes mortas do corpo que despencam. Filosofava sobre o sentido da vida, que pelo que ela via espalhado por ali, era a morte. Foi sendo tomada pelo terror de morrer sozinha. Em quanto tempo alguém notaria a sua falta? Será que o cheiro de corpo decomposto infestaria todo o edifício ou apenas seu apartamento? Quanto mais pensava na morte, mais se distanciava do nojo e do desejo. Parou, deitou no sofá coberta e encolhida. A sala clara pela luz do dia. Ligou a tv e deixou que o som a invadisse, silenciasse os pensamentos. Dormiu em menos de cinco minutos. O sono não foi tranquilo, fragmentos de sonhos se impunham ao relaxamento da mente. A noite chegou, ela levantou, preparou um jantar leve, pegou um livro de poesia, adormeceu. E dessa vez, o repouso foi satisfatório. 


Simone de Paula - 22/02/2019


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