sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Biografia

Resolveu inaugurar o corpo com a imagem de um peixe. Antes mesmo de saber o que desenharia sobre a pele, já tinha decidido em que lugar do corpo colocaria aquela imagem. Seria na lateral do antebraço. Queria causar horror aos pais, que imaginavam que ele seria um advogado. Garantiu com isso não apenas a quebra das expectativas, como um olhar de repúdio quando se alistou no exército. Sentiu a maior satisfação ao ver nos olhos do avaliador a desaprovação. Mas, talvez como castigo, ou porque seu corpo era saudável e com a altura adequada à um treinamento, não conseguiu ficar de fora da instituição militar. Um ano de desaforos e castigos em resposta às desobediências e fugas.
Saiu de lá direto para a faculdade. Já tinha perdido um ano e os pais agora queriam que ele ganhasse tempo. Ele queria ter um motivo para passar o dia fora de casa. Deu certo. Assim que passou no vestibular, fez mais uma tatuagem. Dessa vez no ombro, bem grande, uma arte geométrica que descia pelo braço e circundava o bíceps. Mostrava o desenho todo quando alguém percebia, pela barra da manga da camiseta, os traços pretos bem destacados. Não concluiu o curso, porque um amigo que tinha uma empresa de entregas o chamou para trabalhar. Entre dinheiro e conhecimento, ele ficou com o primeiro. As namoradas vinham, mas o largavam quando percebiam que o olhar dele era muito  mais voltado para si, e para o seu corpo, do que para elas. Morava ainda com os pais, porque a grana que ganhava só dava para os seus prazeres. Tentou ensaiar um pouco de tudo, ora esportes, ora hobbies, mas nada o fazia persistir. Detectou que não era o rei da consistência. Quando fez 28 anos já tinha em torno de dez tatuagens pelo corpo. Os motivos variavam, tanto na justificativa do porque fazer quanto no desenho ou estilo que usaria em cada vez. Sofreu alguns chacoalhões da vida pouco antes dos 30 anos. O pai, sofreu um acidente e ficou muito mais dependente dos cuidados da mãe. Ele precisou colaborar financeiramente em casa e se viu amarrado ali. Os anos passaram, ele foi morar temporariamente em outra cidade para trabalhar num projeto com uma antiga colega de faculdade. Fora do meio ambiente conhecido, percebeu em si uma insegurança absurda, nunca antes entendida dessa forma. Jocoso, fazia piada de tudo e todos e continuava escondido das situações que em que ele via desafio e possibilidade de mostrar competência. Chegou aos quarenta anos com o corpo quase todo coberto de tatuagens. Virou seu vício. Foi blindando os sentimentos com as sensações na pele, vendo em si as marcas de uma vida. Voltou para a casa, a mãe agora viúva precisava de companhia. Ela deu para ele o lugar que sempre esperou, quarto principal da casa e autoridade de quem é chefe de família. A namorada da ocasião mudou para lá e decidiu que queria ter um filho. Família inteira, completa, modelo padrão. Ele curtia toda a situação, mas parecia não saber mais quem era, porque se olhava no espelho e parecia ver uma folha de jornal, com rabiscos sem fim. Que notícias daquela vida aquele corpo traduzia? Com a morte da mãe veio a depressão. Se escondeu do mundo e de si mesmo. Pediu para tirar os espelhos da casa, não aguentava se olhar, ver o excesso em que ele tinha se transformado. Sentia frio, queria cobrir pernas, braços, mãos e pés. O filho, agora já crescido, pedia para ele se tratar, queria o pai com ele. No apelo do filho, algo que ele nunca tinha conseguido dizer ao próprio pai. Resolveu que deveria voltar para a vida, atender aquele pedido, não apenas pelo menino, mas principalmente por ele. Já mais velho, resolveu escrever uma biografia. Não sabia como começar ou o que dizer. Não queria escrever apenas os acontecimentos, esses todos sabiam. Chamou o filho para uma viagem. Ele tinha conhecido o sul do país e queria mostrar como era aquele lugar pelos olhos dele. Foram. O rapaz, no caminho, foi perguntando sobre as tatuagens e ele se viu contando muito mais de si e da sua vida do que se falasse dos eventos. Finalmente inventou algo que ele pode dizer que era seu. Ao lado do filho, criou seu livro de memórias. O filho, jovem esperto e talentoso, fazia as fotos. Ele escrevia de que se tratava cada uma delas. Livro pronto, colocou o material debaixo do braço e saiu em busca de uma editora. Uma coisa ele sabia, não morreria sem contar o melhor de si.

Simone de Paula - 08/02/2019


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