sexta-feira, 16 de junho de 2017

Degelo

"Há quanto tempo você não faz uma loucura?"
Leu essa frase no anúncio de vodka no ponto de ônibus indo para o trabalho. Geralmente ia de carro, pois gostava de conforto. Era pouco preocupado com o trânsito carregado, inclusive reclamava disso todas as manhãs, mas não se sentia parte do problema, tinha direito porque trabalhava muito. Usava a desculpa de muitos.
Já estava bravo o bastante por ter que deixar o carro na oficina mecânica, ainda tinha que dividir o ônibus cheio com mais um monte de gente carregada de sacolas. Bufava muito. Mas não deixava de pensar naquela frase. Se sentia meio amolecido, tendo que sustentar uma raiva que carregava há muito tempo e parecia ter se descolado um pouco dele. Detestava vodka, não se tratava disso, mas justamente da loucura que realmente não fazia há muito tempo. Tinha acabado de tomar consciência que se tornou o que dizia jamais ser, um trabalhador burocrata que não faz nada de divertido na vida, só o trajeto casa-trabalho-casa e xinga o chefe dez vezes por dia em voz baixa. 
Chegando no trabalho começou a fazer uma linha do tempo imaginária. Na cronologia, tinham buracos, não lembrava de muita coisa. Percebia lapsos de memória em relação a amigos, professores, namoradinhas, se assustou. Pegou um papel e foi escrevendo retroativamente, ano a ano, queria recuperar as lembranças e principalmente reviver as loucuras que sabia já ter feito. Os seus vinte anos foram maravilhosos, cheios de experiências e aventuras. Vivia duro, em todos os sentidos. Não recusava nada. Lembrou de um amigo com quem saia todo final de semana e agora estava tão distante, casado, com filhos, careca e barrigudo. Mal se falavam, nenhum assunto combinava e a nostalgia dos encontros já não colava mais. O pensamento no amigo puxou uma namoradinha, que vivia dizendo que tinha planos doidos para a vida dela. Teve certeza que poderia reencontra-la, ver se ela tinha seguido os planos. Naquela época ele queria muitas coisas, mas não tinha grana para fazer. Hoje tem a grana e parece não querer mais nada. Essa era a grande questão, lembrar dos sonhos antigos e realiza-los agora. Mas eram coisas tão bobas. Na verdade, eram desejos de um rapaz de vinte anos. Passou o dia meio nostálgico, tristonho, trabalhando em câmera lenta. No ônibus, voltando pra casa, olhava os anúncios para tentar rever o cartaz da vodka. Procurando, achou outro cartaz, dessa vez era um urso polar, num comercial de canal da tv a cabo. Pensou que sempre quis conhecer neve e no Brasil ele jamais teria isso. Naquele momento, o estômago gelou e o coração incendiou, viu o cartaz da vodka na frente dele e decidiu, ia conhecer o bar de gelo que sabia existir na Suécia. Chegou em casa, pesquisou, ia gastar a grana que tinha e que não tinha, mas era uma questão de fazer uma loucura.
No dia seguinte, chegou para o chefe e pediu férias, disse que precisaria sair já na próxima semana. O chefe negou, e ele sorriu. Comprou a passagem, podia ser demitido, era só uma questão de loucura, melhor que não fosse fácil. 
O destino estava se cumprindo direitinho, pois tudo dava errado nos preparativos, pedindo que ele se empenhasse muito, era pra ser coisa de maluco. Vôos com várias escalas para chegar até lá, hospedagem na casa de desconhecidos, pouca grana pra comida. Descobriu que além do bar, teria um festival com bandas que jamais viriam tocar aqui, na terra dele. Comprou ingressos, ia para o festival e passaria dias e noites em claro. Estava quase tudo pronto, mas essa trip tinha que ter companhia, era o resultado de tantos papos nas noites loucas que ele já tinha vivido. Ligou pro amigo, aquele que agora só pensava na família. Sabia que podia levar um não, e que junto viria um tanto de decepção. E foi assim que aconteceu. Pensou na doida, tentou encontra-la nas redes sociais, só assim daria. Nem lembrava sobrenome, mas foi procurando pelos antigos amigos das baladas. Chegou, achou, sentiu de novo o gelo no estômago e o quente no coração. Fuçou no perfil dela, separada, sem filhos, morando na Argentina. Mandou mensagem, quem sabe ela toparia. Ela respondeu, ela riu muito, ela topou. Em dois dias ela estava no Brasil. Se encontraram no aeroporto, sem muito sentimentalismo, parecia que tinham se visto o mês passado. Eram próximos, viveram muito perto na juventude, quando as máscaras são menos pesadas e a intimidade mais fácil. Estavam embarcando quando ele recebeu uma ligação do chefe. Atende, dizendo que está no aeroporto e viajando de ferias. Do outro lado, a gritaria só fez com que ele sentisse mais ainda o prazer da loucura. Desligou, pegou na mão dela, sorriam e entraram na sala de embarque.

Simone de Paula - 16/6/2017


Nenhum comentário:

Postar um comentário