Arnaldo tinha uma vida bem organizada. A rotina engessada
não incomodava, dava garantias. Cedo começou, cedo conquistou. Agora era só
cuidar da manutenção. Via a vida de forma lógica, um engenheiro. O que ele não esperava é que seu sono, por
sonhos insistentes, o tiraria dessa sistemática rotina.
Não sabia bem em que momento da noite acontecia, só sabia
que os sonhos o acordavam. Não lembrava bem sobre o que eram, mas tinha algo
que o perturbava a ponto de o despertar do sono restaurador costumeiro.
Precisava achar a razão dessa desordem.
Primeiro perguntou à esposa se ela notava algo diferente no
seu sono durante a noite. Ela, que dormia também muito bem, dissera que não via
nenhuma atividade, nem terrores noturnos, nem sonambulismo. Para ela, ele
continuava dormindo bem como sempre. Mas ele insistia, pedindo que ela o
ajudasse a saber se existiram barulhos na rua ou no apartamento de cima, cujos
vizinhos tinham mudado recentemente. Para ela, a rua continuava quieta e os
vizinhos não perturbavam.
Arlete, a esposa de Arnaldo, já estava acostumada, quando
algo não ia bem, ele a acusava, afirmando que ela não era atenta ao que
acontecia com ele. Pedia mais atenção, apoio, cuidado. Ela realmente não
prestava muita atenção aos excessos emocionais que ele apresentava quando algo
saía do controle. Não era uma questão de cuidado, era simplesmente a vida, que
não funcionava como o relógio cuco que badalava na sala de estar de meia em
meia hora, pelos quinze anos em que estavam casados.
Ele entrou numa nova fase, assumindo o caráter
investigativo. Pegou seu caderninho de anotações e deixou ao lado da cama e
passou a anotar os fragmentos dos sonhos que lembrava. Percebia que tinham algo comum, ele se sentia
roubado. Literal como qualquer pessoa sistemática, Arnaldo resolveu cuidar
melhor das finanças na empresa em que trabalhava. Suspeitou que pudesse estar
sendo passado para trás por alguém. Trabalhou durante algumas semanas até mais
tarde e pegou um pequeno deslize no seu trabalho, ele não tinha sido tão
rigoroso em um determinado período. Não lembrava o que acontecera, mas deixou
escapar algo e se sentiu mal por isso. Não disse nada a ninguém na empresa, mas
desabafou com Arlete, que não notou nada tão grave no ocorrido.
Mas os sonhos continuaram e a perturbação de Arnaldo
aumentou, afinal, o que era essa insistência? Resolveu investigar um pouco
mais, foi ler sobre sonhos e o que eles queriam dizer. Aprendeu um pouco,
resolveu que já tinha dominado o que necessitava desse assunto. Ele agora se dedicava
durante o dia ao trabalho com mais rigor. À noite, chegando em casa, lia sobre
sonhos e fazia conjecturas sobre o que tinha sonhado. E, indo para cama, fazia
todo um preparatório para dormir bem, tomando diariamente chá de ervas, e
deixando o bloquinho bem disponível para anotar o que tivesse sonhado.
Aproveitou e colocou o abajur ali, para ser ligado ao acordar e assim não
esquecer o que tinha vindo durante o momento do sonho. Ele realmente se
dedicava a ele mesmo.
Arlete acordava sobressaltada, com as atitudes de Arnaldo ao
ser tomado por um sonho. Ele agora era o perseguidor dos sonhos, pois não
poderia deixar nenhuma informação escapar. A paciência dela diminuía e a vida
deles se transformou nessa maratona investigativa. Poucos programas sociais,
poucos assuntos que não se centravam no problema de Arnaldo.
Arlete resolveu entrar na aula de dança de salão, coisa que
sempre quis fazer, mas Arnaldo não queria. E, aproveitou que ele chegava do
trabalho e mergulhava nos livros, para escapar e poder realizar esse desejo.
Ela dançava três vezes por semana, se sentia bem. Arnaldo não se importava
muito com isso, acreditava no relacionamento livre, em que os dois deveriam ter
momentos para fazer o que quisessem. Arlete queria mostrar os passos novos de
dança quando chegava em casa, mas Arnaldo não estava muito interessado. Olhava,
mas não a via dançar.
Num jantar em que estavam juntos, Arnaldo disse para a
esposa que os sonhos continuavam mostrando que ele estava sendo roubado. Ele
começou a se sentir ameaçado por isso, pensando que talvez a casa estivesse
sendo vigiada, que algum ladrão entraria a qualquer momento, ou pior, que o
dinheiro do banco sumiria. Respondendo prontamente, ele aumentou o sistema de
segurança da casa e criou uma relação mais próxima com o gerente da conta, para
ter um aliado dentro do banco. Esse novo sistema atrapalhava Arlete, pois ela
perdia tempo na rua desativando o tal alarme. Além dos possíveis bandidos, ela
também tinha sido colocada para fora de casa.
O tempo passou, os sonhos insistiram. Arnaldo desistiu de
investigar. Apresentava um semblante cansado, desanimado. Os cabelos brancos
apareceram e ele mostrava menos interesse em tomar conta dos mínimos detalhes
do trabalho da equipe. Um dos colegas de Arnaldo, durante o cafezinho habitual,
comentou, de gozação, que ele parecia um homem desquitado, pois estava com cara
de mal-amado. Isso deu a pista que
faltava para Arnaldo, o negócio era com Arlete. A cabeça dele começou a
rodopiar, teve certeza que ela estava tendo um caso com alguém. Ela andava mais
arrumada, se maquiava, estava mais magra, usava salto com mais frequência. Era
isso, ele estava sendo traído. Mas, como se considera um homem da razão, não
quis abordá-la sem provas, decidiu contratar um detetive, afinal, Arlete podia
notar alguma mudança na conduta dele. Não perguntou aos amigos, não queria
passar por corno, mas achou na internet uma agencia de investigação. Marcou uma
reunião com Otávio Júnior, o investigador particular indicado para os casos extraconjugais. Na conversa, quando perguntado sobre a rotina da mulher, não
sabia bem ao certo o que ela fazia durante toda a semana. Existiam muitas
brechas de tempo sem que ele pudesse indicar o paradeiro dela. Otávio Júnior o tranquilizou, dizendo que descobrira tudo e o informaria. Arnaldo ficou
satisfeito com a postura do investigador, que não falou muito, mas fez as
perguntas certas para ele.
Três semanas se passaram e nenhum telefonema do detetive.
Arnaldo ligou para ele, mas não conseguiu falar, deixou um recado. Arnaldo foi
se incomodando, pois ligava todas as tardes e nada. Como não tinha pagado pelo
serviço, decidiu que daria uma canseira nele também quando fosse acertar o
pagamento, na entrega das provas.
Às noites, chegando em casa, Arnaldo observava Arlete nos
mínimos detalhes, percebia que ela estava cantarolando com mais frequência, com
o olhar perdido em devaneios, sem se importar mais com ele. Para chamar-lhe a
atenção, ele batia portas, perguntava sobre tudo, estava furioso com a atitude
de desinteresse da mulher. Resolveu investigar por conta própria, remexeu nas
coisas dela, não achou nada muito significativo. Olhou na estante, alguns
livros novos, mas nada demais, só assuntos de dança. E ele começou a imaginar
que deveria ser alguém da escola de dança, na certa algum garotão, professor,
que fazia graça com todas as alunas. Numa atitude astuta, segundo ele mesmo,
resolveu acompanhá-la um dia na aula. Ela topou em maiores constrangimentos,
ele ficou cismado, mas não falou nada. Foi, viu a aula, gostou, mas sentiu
muito ciúmes dela, dançando, solta, rindo. Percebeu que nunca tinha sentido
tanto ciúme assim, nem quando namoravam e ele tinha medo do Pedro Paulo, o
vizinho de Arlete que jogava futebol e chegava suado dando beijinhos nela todas
as vezes que estavam juntos.
Foram para a casa e no dia seguinte Arnaldo ligou para
Otávio Júnior logo pela manhã, perguntando da investigação. O detetive, que
nesse dia atendeu, disse que não tinha encontrado nada, passou a rotina
completa dela por email e disse que ele devia apenas os custos gastos durante o
trabalho, com gasolina e material de impressão fotográfica. Arnaldo descansou
ao ouvir isso, pagou o que devia ao investigador e chegou em casa com flores
para Arlete. Ela recebeu, agradeceu, mas nem colocou em vaso. Ele se ressentiu,
queria uma festa por estar dando flores a ela, e ela nem se importava. Pediu
mais atenção, como um menino mimado, e ela deu, colocando o vaso na mesa
durante o jantar.
Os sonhos continuavam e agora tinham um caráter mais forte,
mais intenso, com assaltantes frente a frente com Arnaldo, com armas na mão,
facas, as ameaças ficaram mais violentas. Arnaldo não aguentava mais, ele
precisava ver com os próprios olhos essa rotina da Arlete.
Na manhã seguinte, saiu como normalmente para o trabalho.
Chegando ao escritório, disse que iria a uma reunião na parte da tarde e
aproveitaria para almoçar na rua. Saiu sem levar muitas coisas, foi de carro
até a sua casa e ficou olhando para a porta, esperando qualquer movimento de
Arlete. Foram cerca de duas horas esperando, quando viu um carro parar na
porta, de lá desceu um homem, que tinha um jeito familiar, mas daquela
distância ele não conseguia dizer quem era. O homem tocou a campainha e foi
recebido com beijos e abraços. Arnaldo ficou em choque. Não sentia raiva, só
medo, pavor, ficou atordoado, desesperado. Arlete fechou a porta e seguiu no
carro daquele estranho, ou melhor, daquele sabes-se lá quem. Arnaldo, num ato
impensado, seguiu os dois. Pararam há três quadras dali. O lugar era conhecido,
era perto do escritório de Otávio Júnior. Nessa hora Arnaldo teve um estalo,
era o detetive. Viu o casal sair do carro e subir para a sala comercial que
ficava no décimo andar. Arnaldo seguiu-os, sem nem pensar o que iria dizer ou
como fazer. Queria chorar, queria
gritar, não sabia o que fazer, não queria perder Arlete, mas queria matar
aquele desgraçado que tinha roubado a sua mulher. Chegou na porta e a esmurrou com
toda força que tinha. Otávio Júnior abriu a porta assustado, sem saber o que ou
quem poderia ser. Arlete se sentou como se fosse uma cliente. Quando ele abriu
a porta e viu Arnaldo, disfarçou, fingindo surpresa, como saudaria um antigo
cliente. Arnaldo saiu de primeira dando um empurrão e um soco na cara do rapaz.
Olhou para Arlete, pegou no braço dela e saiu a arrastando pela sala. Não disse
nada, não tinha o que dizer. Chegaram em casa, ele chorou, chorou a noite toda.
Arlete ficou na sala, dormindo no sofá, sem querer olhar na cara dele.
No dia seguinte, pela manhã, ela preparou o café e ele se
sentou para conversarem. Ele perguntou sobre o porquê da traição e ela disse a
verdade, porque ele tinha se ausentado demais. Ele não conseguia entender e ela não se
preocupava com isso, apenas queria dizer a verdade, não queria mentir, porque
ele era parcialmente responsável por aquilo, primeiro, por deixá-la tão sozinha
por tanto tempo, preocupado com as mínimas coisas da vida dele, incluindo os
sonhos perturbadores. E segundo, porque ele colocou aquele homem no caminho
dela, afinal, ele tinha contratado um homem para olhá-la, ouvi-la, acompanhá-la,
durante todo o tempo que ele não estava lá. Se ele quisesse culpar alguém de traição,
deveria começar por si mesmo, depois poderiam conversar sobre o caso.
Arnaldo não aceitava, continuava reto e rígido como sempre.
Mas também percebeu que amava muito aquela mulher, que seria incapaz de
deixá-la, mas também incapaz de perdoá-la. Teria que conviver com a
desconfiança perturbadora dos sonhos para o resto da vida.
Não passou pela cabeça dele perguntar o que ela queria. Ele
ficou no quarto, durante todo o dia, pesando o que ele faria. No final da tarde,
Arlete entrou e anunciou que ela passaria um mês fora, na praia, com a tia,
para pensar o que ela queria fazer. Ele se surpreendeu, pois nem tinha se dado
conta de que um casamento é feito de dois e se ela quisesse ir embora, podia,
não dependia só dele. Ele não tinha como dizer sim nem não para o caso. Pediu
que ela ficasse, ela disse que não, mas que voltaria.
Ele pensou, sentiu falta, imaginou-se sem ela. Ela pensou,
sentiu falta, imaginou-se sem ele.
Ao fim do período de recesso, ela voltou para casa e tiveram
a conversa mais franca da vida deles. Todas as verdades foram colocadas na
mesa, os desejos, os medos, as dificuldades, a paixão. Resolveram retomar o
casamento, mas com novas regras, num novo acordo. Arnaldo deveria pensar que a
vida deles não era um roteiro. Além disso, ele não era o personagem principal e
ela coadjuvante. Deveriam ter papeis com a mesma proporção ou não seria mais a
história deles.
Ele se deu conta do quanto ele pensava na vida só pelo ponto
de vista dele. Foi difícil, se esforçou, se adaptou, não ficou perfeito, mas
ficou melhor.
Numa manhã de domingo, enquanto tomavam café juntos, Arnaldo
disse a Arlete que ele não sonhava há mais de um mês, que toda aquela situação
reformulou a mente dele. O maior medo foi vivido e agora ele não precisava mais
se proteger disso.
Simone de Paula - 06/01/2017
Inspirado na vida cotidiana de casais e no filme 'Um corpo que cai', de Alfred Hitchcock