Houve um tempo em que eu engoli, engoli muito. A oferta vinha de fora e eu botava pra dentro. Nem sempre eu queria e nem sabia o que fazer com aquilo. Mesmo na ânsia, na precipitação do vômito, me segurava e mantinha lá, engolido. Se estava na borda da garganta, na boca do estômago ou no meio do intestino, não importava, só sei que estava dentro. Eu sorria, com os lábios bem apertados, para não correr o risco de despejar o que deveria permanecer engolido.
Entalada, sem meios de expelir o que já tinha saturado, uma
revolta interna fez supurar aquela merda toda e numa tosse incontrolável
vomitei, vomitei muito, incessantemente. Os jatos jorravam, se lançavam como
foguetes buscando o céu. Me senti vazia, culpada, envergonhada. Meu entorno mostrava
eras de entorpecimento. Eu não me reconhecia na vomitona e nem sabia como
recuperar a engolidora. Respirei, olhei, recuei. Comi tudo de novo, aquele
vômito nojento, disforme, como um animal que se alimenta dos seus próprios
excrementos. Escondi tudo de novo, não de mim, do mundo.
Se antes o que foi pra dentro já não era agradável, longe
disso, agora era impossível permitir que avançasse demais corpo adentro. A
garganta permanentemente irritada, sufocada, atulhada daquele gosto acre e
repugnante. Mas eu não podia, voluntariamente, vomitar novamente. Segurava,
firme, silenciando as palavras para não correr o risco de regurgitar tudo de
novo.
Tento esconder de mim a cena da erupção vinda das minhas
entranhas. Cubro os olhos, mesmo num entorno aparentemente imaculado. Aquilo
que nem está mais ali, visível, é a marca catártica outrora reconhecida. Imaginava
fora o que via dentro. Aquilo era meu? Sim, era meu. Mas como tinha ido parar
ali. Bem, vindo de lá, de lá de fora. Como mandar embora? Eu não aceitava o
fato que saísse assim, cru, disforme, horrendo, visceral, grotesco. Queria que
viesse ao mundo educado, aceitável, encantador. Não era assim, não tinha entrado
assim, tinha sido forçado. Foi obrigatório. Não havia dentro de mim o que
pudesse processar aquilo, não tinha outra via para sair.
Parei, parei tudo. Se me movo, sejam pernas, braços, boca ou
olhos, corro o risco de botar tudo de novo pra fora e culpada, recolher, como
um animal. Parei, não sei.
Simone de Paula - 20/10/2016
The scape of the artist - Jan Fabre
Sugestão de música para ouvir lendo o conto: Queens of the stone age - 'no one knows'
https://www.youtube.com/watch?v=K9WOBsPVjFE
letra e tradução aqui:
https://www.letras.mus.br/queens-of-the-stone-age/64333/traducao.html
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