“Com uma única vida
pode-se escrever mil autobiografias. Não é necessário mentir, basta deslocar
uma palavra, mudar um olhar para iluminar um outro aspecto da realidade
enterrada.”
Certa manhã, tal parágrafo me transportou para minha própria
biografia. Afinal, o que eu contava de mim mesma? Depois de tantos anos de
análise será que eu podia dizer que tinha contado mais de uma versão da minha
história.? Minha História, só isso era o bastante para confirmar que não. Penso
em versões, no plural, mas não me desapego da história singular. Seria mesmo
singular a nossa história ou também o que é singular pode se multiplicar?
Nesse último mês, o contato com um livro em particular tem
me feito muito bem. Não que ele me dê alegria ou bem-estar, mas porque ele me
eleva a um estado em que o horizonte pode ser repensado, revisitado. Do lugar
que me encontrava conseguia olhar o horizonte como de uma praia. O mar, sem
dúvida, possibilita uma visão ampla e sem muitos entraves, mas ainda
assim ele limita ao térreo. Você pode imaginar algum tipo de além do
horizonte ou mesmo inventar distorções da forma reta que ali se impõe ao olhar.
Mas, sem dúvida, o limite é aquele mesmo do ponto de onde se olha, do ponto de
partida do olhar, do olho pelo qual você olha.
Quando fui elevada, naquela grua lenta e delicada, pude
observar o mesmo horizonte. Mas enquanto eu era içada, ele se expandia, se
inclinava, se reformulava. O mesmo horizonte observado do mesmo lugar pode,
ainda assim, ter um novo ponto de vista. E mais, enquanto você se mexe, ele
também se mexe em sua direção.Ele não permanece estático, ao contrário, te
acompanha. Não se coloca da mesma forma que antes, tenta te manter
vendo o mesmo, oferecendo novos ângulos, prismas, revivendo diante do
seu olhar.
Como fazer isso com nossa própria biografia quando fixamos
nossa história no horizonte e cada face daquilo que se vê é entendida,
mas não se movimenta?
Nessa condição de elevação que vivi, o horizonte também
estava fixado, mas o movimento a que fui
lançada foi tão interessante que me possibilitou ver
realmente de outro lugar.
Como é possível fazer isso sem essa condição de elevação?
Escrevendo aqui me lembrei do filme Up! Algo ali
também o tira do chão, possibilitando uma reformulação do horizonte intocado.
Usei o corpo para indicar uma condição de pensamento. Mas
como poder viver isso no pensamento? Será que consigo fazer isso com a minha
história através da escrita?
Pensando como fazer, mais uma referência cinematográfica me
ocorre, pois os irmãos Watchovisk já fizeram isso no Matrix. Mas sempre o corpo
é o mobilizador dessa condição. O fazer com o corpo quando ele já se distanciou tanto da
própria história?
Pode-se dizer que algo no meu destino mudou, não apenas com
essa leitura, mas com os anos de análise. Será que o destino muda por ter visto
novos significantes no horizonte ou o destino de fato tem um sentido próprio?
O entendimento do passado pode proporcionar novidades no
futuro. Vemos diferente, escolhemos melhor, experimentamos. Mas esse destino
teria mudado mesmo?
E, se o passado fosse diferente? Nesse içar, o passado pode
ser diferente e que diferença teria esse destino? Parece que ele traria
algo realmente muito distante daquilo que seria uma alternativa de destino para
o antigo passado.
Bem, o fato é que não dá pra saber só testar. E, se é uma
questão de descobrir como faz, não dá pra pensar como faz, só pra fazer.
Reconheço que opto com frequência pela escrita didática,
explicativa, reflexiva. Mas e a ficção da biografia, onde entra? Como poder
fazer biografia sem personagem, sem situação, sem conflito e sem sentimentos?
Uma biografia se faz com pessoas, com acontecimentos e esses não podem ser
construídos na teoria, podem ser imaginados, mas não vividos antes mesmo de
inventados.
O exercício será breve. Algumas versões e vejo como será
possível ser içada e ver um horizonte em movimento.
Simone de Paula - 04/02/2015
Conto inspirado no livro 'Autobiografia de um espantalho', de Boris Cyrulnik
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