Marina chegou da rua carregada de sacolas e entrou em casa fazendo
mais barulho do que o normal. Deixou a porta entreaberta e tentava se
desvencilhar da bolsa quando ouviu um batuque de leve no batente da
porta, seguido de um 'oi', sussurrado. Era Orlando, o vizinho de
apartamento que tinha mudado recentemente. Ela olhou com simpatia e
retribuiu o 'oi', seguido de um sorriso, traço comum em Marina. Se isso
fosse um filme de Hollywood, ele perguntaria se ela precisava de ajuda.
Mas como estamos em São Paulo, na vida real, ele mal se preocupa com
ela. Ele só pensa na vontade dele, que foi o que o levou até lá após ter
notado a presença dela. Ele segue a conversa comentando que ele tinha
comprado um quadro e a chamou para ver a pintura. Ele sabia que ela
gostava de arte e achou que ia 'pegar bem', exibir sua nova aquisição.
Ela achava Orlando legal, estava acostumada com os assédios leves dos
homens e lidava bem com isso. Larga as coisas e vai. Ela já conhecia o
imóvel, pois tinha visto enquanto ainda estava vazio. Após a breve
reforma, ele, por sua personalidade sociável, já tinha feito questão de
mostrar o projeto pronto. Ele via valor no que fazia e gostava de se
exibir por isso. Marina entra e vê uma tela apoiada no chão. Ele então
conta a história daquele quadro. Um amigo, professor de artes e pintor,
tinha feito esse quadro para ele colocar no apartamento novo. Ele achava
bem bonito e o artista tinha explicado que na técnica usada, tinham
muitas camadas de tinta e muito tempo de trabalho. Realmente aquela
pintura não causou nada em Marina, mas a relação dos dois era sempre
muito cordial e ela comentou algo simpático: "a filha de um casal de
amigos queria brincar com tintas e disse para a mãe que queria desenhar
cores. Ela queria só pintar, sem desenhar nada, e expressou dessa forma.
Crianças são tão simples no seu modo de pensar, tão diretas, né?" Com
essa frase ele imaginava suavizar a indiferença pela obra que ele tanto
valorizou, mas ele ouviu como sendo uma dica para ele ir direto à
cantada que ele tanto ensaiava. E ele foi direto ao ponto: "a gente
podia sair um dia desses, né?" Marina não sabia se sairia ou não com
Orlando, tinha toda a problemática de serem vizinhos, ainda que para os
homens essa problemática não existe, apenas a fantasia erótica, também
plantada por Hollywood. Já que ele é esperto e entende as palavras dela,
até mesmo o que ela não disse, ou imaginou não ter dito, resolveu falar
mais de si, através dos quadros. "Eu gosto de pintura abstrata, aliás,
adoro. Mas esse quadro tem tudo sob controle, bem arrumado, bem
colocado. Não tem a invasão incerta das cores, o rompante violento das
pinceladas, os efeitos mais sombrios ou carregados das camadas de tinta
acumuladas." E ela continuou, se ele queria saber como conduziria um
romance com ela, deveria entender que seria preciso mais ousadia. "A
vida é isso, uma surpresa que se joga em cima de nós e provoca o
desconforto do desconhecido dentro dos elementos mais familiares." Ele
era realmente um cara vivido e bem tranquilo no trato com as mulheres.
Olha para ela e completa: "É bonita, né? Vou colocar nessa parede. Fica
bom?" Ela sorri e concorda num movimento automático. O silêncio chega,
ela se dirige para a porta e ele segura a mão dela, e pergunta de novo:
"o que você vai fazer hoje à noite?" Ela sorri e dá um tchau sem
resposta. Como ela tinha pensado, ele vai ter que se esforçar mais do
que isso.
Simone de Paula - 27/05/2016
Qualquer semelhança com pessoas ou fatos da vida real, é mera coincidência. Mas essa pintura é real, o artista é real, eu adoro e quero na minha sala de estar.
Simone de Paula - 27/05/2016
"Nem com todas as palavras seria possível" - Jeff Chies
Qualquer semelhança com pessoas ou fatos da vida real, é mera coincidência. Mas essa pintura é real, o artista é real, eu adoro e quero na minha sala de estar.
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