sexta-feira, 27 de maio de 2016

Projetando um quadro

Marina chegou da rua carregada de sacolas e entrou em casa fazendo mais barulho do que o normal. Deixou a porta entreaberta e tentava se desvencilhar da bolsa quando ouviu um batuque de leve no batente da porta, seguido de um 'oi', sussurrado. Era Orlando, o vizinho de apartamento que tinha mudado recentemente. Ela olhou com simpatia e retribuiu o 'oi', seguido de um sorriso, traço comum em Marina. Se isso fosse um filme de Hollywood, ele perguntaria se ela precisava de ajuda. Mas como estamos em São Paulo, na vida real, ele mal se preocupa com ela. Ele só pensa na vontade dele, que foi o que o levou até lá após ter notado a presença dela. Ele segue a conversa comentando que ele tinha comprado um quadro e a chamou para ver a pintura. Ele sabia que ela gostava de arte e achou que ia 'pegar bem', exibir sua nova aquisição. Ela achava Orlando legal, estava acostumada com os assédios leves dos homens e lidava bem com isso. Larga as coisas e vai. Ela já conhecia o imóvel, pois tinha visto enquanto ainda estava vazio. Após a breve reforma, ele, por sua personalidade sociável, já tinha feito questão de mostrar o projeto pronto. Ele via valor no que fazia e gostava de se exibir por isso. Marina entra e vê uma tela apoiada no chão. Ele então conta a história daquele quadro. Um amigo, professor de artes e pintor, tinha feito esse quadro para ele colocar no apartamento novo. Ele achava bem bonito e o artista tinha explicado que na técnica usada, tinham muitas camadas de tinta e muito tempo de trabalho. Realmente aquela pintura não causou nada em Marina, mas a relação dos dois era sempre muito cordial e ela comentou algo simpático: "a filha de um casal de amigos queria brincar com tintas e disse para a mãe que queria desenhar cores. Ela queria só pintar, sem desenhar nada, e expressou dessa forma. Crianças são tão simples no seu modo de pensar, tão diretas, né?" Com essa frase ele imaginava suavizar a indiferença pela obra que ele tanto valorizou, mas ele ouviu como sendo uma dica para ele ir direto à cantada que ele tanto ensaiava. E ele foi direto ao ponto: "a gente podia sair um dia desses, né?" Marina não sabia se sairia ou não com Orlando, tinha toda a problemática de serem vizinhos, ainda que para os homens essa problemática não existe, apenas a fantasia erótica, também plantada por Hollywood. Já que ele é esperto e entende as palavras dela, até mesmo o que ela não disse, ou imaginou não ter dito, resolveu falar mais de si, através dos quadros. "Eu gosto de pintura abstrata, aliás, adoro. Mas esse quadro tem tudo sob controle, bem arrumado, bem colocado. Não tem a invasão incerta das cores, o rompante violento das pinceladas, os efeitos mais sombrios ou carregados das camadas de tinta acumuladas." E ela continuou, se ele queria saber como conduziria um romance com ela, deveria entender que seria preciso mais ousadia. "A vida é isso, uma surpresa que se joga em cima de nós e provoca o desconforto do desconhecido dentro dos elementos mais familiares." Ele era realmente um cara vivido e bem tranquilo no trato com as mulheres. Olha para ela e completa: "É bonita, né? Vou colocar nessa parede. Fica bom?" Ela sorri e concorda num movimento automático. O silêncio chega, ela se dirige para a porta e ele segura a mão dela, e pergunta de novo: "o que você vai fazer hoje à noite?" Ela sorri e dá um tchau sem resposta. Como ela tinha pensado, ele vai ter que se esforçar mais do que isso.

Simone de Paula - 27/05/2016


"Nem com todas as palavras seria possível" - Jeff Chies

Qualquer semelhança com pessoas ou fatos da vida real, é mera coincidência. Mas essa pintura é real, o artista é real, eu adoro e quero na minha sala de estar.

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