sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Ella

Ella ganhou esse nome porque a mãe tinha realizado o sonho de ter uma menina. 

Na infância fazia certa confusão quando ouvia o seu nome, era alguém lhe chamando ou apenas usando só o pronome feminino. Mas aprendeu a modular isso. Adulta, pensava que a mãe tinha sido exagerada nessa escolha, pois era uma família que tinha muitas mulheres e ela era filha única. Mas a gente ganha nome e tem que seguir com ele.

Se por conta de ter que lidar com essa especificidade entre o nome e o pronome, por gosto mesmo ou falta do que fazer, Ella pensava muito. Uma cabeça que não parava. Não era nenhum mal, mas também não ajudava muito, pois cada tarefa exigia um tempo longo de execução, porque entre um movimento e outro, tinha a dispersão pelo pensamento que ia longe. 

Na infância, ficava pensando na brincadeira, antecipando o que ia fazer. Adolesceu e passou a ficar imaginando o que acontecia com colegas e ídolos fora do seu campo de visão, a vida deles era uma festa. Começou a trabalhar e não conseguia estar no dia certo do calendário, porque vivia pensando nos eventos mais importantes. Sim, ela se atrasava muito para as coisas, ou deixava de fazer. 

O começo do namoro com Maurício foi um sofrimento, porque com o pensamento veio o sentimento. No começo era saudade e depois, ciúmes. Ella não tinha sossego.

Começaram a falar em morar junto ou casar, ela se angustiava muito em pensar como levaria trabalho, casa, marido, tendo que dividir as atenções. Mas Ella não deixava de viver, apenas funcionava em duas bandas, uma no mundo presente e outra no pensamento paralelo.

A vida se complexifica, muitos temas acontecem simultaneamente e adultos precisam administrar tudo muito bem. É por isso que perdem desejo, curiosidade ou mesmo criatividade, porque ter a cabeça em muitas responsabilidades exige disciplina, coisa pra estoico.

Nesses dias encontrei Ella, que me contou que estava com a cabeça vazia. Disse que tinha perdido os pensamentos. Não se sentia mal, mas não sabia onde encontrá-los. 

O resumo da história é que ela tinha feito umas práticas novas de esvaziamento da mente, que vinha tentando formas de sair da exaustão mental há meses e nada adiantava. Essa tinha dado certo. Não sabia como, mas parece que tinham desligado o botão. Perguntei se ela andava esquecendo das coisas, preocupada com algum  problema neuronal, mas ela disse que não, que aquilo é que era o mais doido, a cabeça ficava desligada, como uma televisão, quando você liga, tem que escolher um canal e assim que é, quando liga, que é quando precisa pensar em algo, escolhe o quê e pronto, voilá, não fica mais exausta,

Me pergunto, desde esse encontro, se eu quero também desligar minha tv.


Simone de Paula - 14/1/22


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