sexta-feira, 5 de março de 2021

Mero borrão

É incrível como aquilo que para nós tem um sentido de existência inegável, para o outro nem significa.

Há uns dias eu estava ouvindo despretensiosamente o discurso de uma analisante. Sua dor expressa nas lágrimas e voz embargada, os constantes nomes ditos e repetidos dos familiares, a eterna declaração da prova do liame da relação que estabelecera com eles, os entes queridos e ingratos.

Já ouvi esses nomes inúmeras vezes, soube das suas características, até de seus atos e tropeços, mas nesse dia, especialmente nesse dia, eu me dei conta da total e completa inexistência deles. Ali, sob transferência, eles não eram mais do que meros borrões, que tinham sido riscados a lápis, e já estavam tão desgastados, que praticamente eram rastros, sombreados misturados uns aos outros.

Qual não foi a minha surpresa ao me deparar com tal revelação: esses todos, não existem! Seres sem nenhuma significância, indefinidos enquanto imagem, imperceptíveis como sonoridade. Nada material, nem mesmo um traço bem demarcado, calcado em uma superfície de sustentação. 

O que era tão potente nela, que a fazia viver grandes emoções, eram apenas projeções distantes de projetos mal-ajambrados.

No deslizar do pensamento, agora mais desinteressado do que antes, na história sofrida de um enredo fraco, me ocorreu que o lápis pode ser apagado com o dedo. Claro que sob certas condições: uma superfície lisa - quase siliconada, com grafite escuro e macio - 2b (<3), e ainda, os fluídos do corpo na ponta do dedo - mistura de suor e oleosidade, que pode ser ativado com a saliva. 

Lambi meu dedo, esfreguei bem rápido no todo da página cheia de rabiscos velhos, friccionei até esquentar bem minha pele. Quanto mais eu fazia sumir tudo aquilo, mais me sentia tomada por um sorriso, que se colocava nas valas que encontrava. Zerei a folha! O que outrora foi branco, quase imperceptível nas bordas que separam do nada, agora carrega um leve acinzentado, pouco regular, mas indefinido. 

Que sorte a minha que naquela época escolhi o lápis à caneta esferográfica.

Simone de Paula - 05/03/2021 

artista: Cy Twombly


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