Naquela manhã de sábado, Ana acordou
cedo como de costume. Tomou o primeiro gole de café e respirou fundo, engasgou
com o próprio ar. Tossiu muito, mas ainda tinha algo travado na garganta. Achou
que o café tinha entrado torto, machucando suas cordas vocais. Era louca por
café e logo no segundo gole o calor aliviou a irritação momentânea, assim que o
líquido passou pela garganta. Não ousou dizer em voz alta, mas aquele café
estava mais amargo que de costume. Na segunda xícara, colocou o dobro de
açúcar, mas por trás do melado, algo ainda era intragável, negro, pétreo.
Aquele sabor tinha um resíduo que ela não sabia dizer o que era.
Não por acaso, era o dia em que ela
sorteava seu jogo de tarot. Embaralhou as cartas, ansiosa pelo resultado.
Concentrada, fechou os olhos e cortou o monte, seguindo o ritual místico que
envolvia o acesso oracular. Ao colocar o segundo corte na mesinha de centro,
onde fazia toda a operação, percebeu que as cartas não pararam onde deveriam e escaparam
em direção ao vazio. Se espalharam pelo chão. Ela tinha afastado demais a mão
que ficou fora da mesa causando o acidente. Aprendeu que isso era sinal
evidente do inconsciente e ela deveria considerar como válidas as cartas que
tinham caído viradas. Esse incidente representava seu mês, mais um mês dos 32
anos de vida. Uma sombra passou pela sua mente e foi inevitável considerar que
aquilo era um mau agouro, especialmente quando reconheceu o mesmo destino que
há alguns anos tinha previsto para sua irmã, que morreu dias depois, de um mal
súbito causado por problemas respiratórios até hoje não explicados. Dentre as cartas viradas, as que se destacavam
eram apenas três, inteiramente expostas, declarando o jogo que ela tinha jogado
naquela manhã. Finalmente encontrou o que tanto buscava. O mesmo jogo, a mesma
combinação. Mudou o foco tentando olhar além do sentimento que insistia em se
servir da culpa e do desejo de expiação daquela antiga previsão certeira e
fatal. No chão, o baralho de cartas formou o desenho da meia-lua, mas de ponta-cabeça.
Era isso ou a tentativa da sua mente de achar conexões mais positivas naquele
cenário de azar. Encadeadas uma a uma, sequenciais, para não deixar dúvida que nada
era fortuito. O arcano que vinha primeiro era a Roda da Fortuna. Nitidamente o
destino se faria presente, levando e trazendo o que poderia ser uma vida que se
supunha existir nela. Racionalizou, poderia ter perdas, mas também aprendizados.
Por mais que tentasse, era inevitável, estava diante dos seus olhos, as cartas
caídas no chão, o destino e o amargo no meio da garganta. A segunda carta, no
centro do jogo que o acaso promoveu com o baralho espalhado, estava a Morte,
estranha, sinistra, apavorante. O sentido contido no nome do arcano não podia
ser ignorado. Já tentou inúmeras vezes tratar essa carta como um aspecto
simbólico, mas era reconhecível que esta, na sequência formada, significava o
que significava. Tudo parecia cada vez mais sombrio. Só restava olhar a
terceira, que ela já tinha visto de relance naquela cena, mas ainda não tinha
assumido. O Diabo aparecia agigantado, perturbador. O coração acelerou, o
estômago gelou, ela quis se esconder. O telefone tocou, ela teve um sobressalto
com o barulho que pareceu tão estranho. Ela não soube quanto tempo durou aquele
momento da leitura do tarot, mas tinha sido uma eternidade, foi um tempo
incontável, pareceu inexistente, como se ela estivesse fora do mundo. Atendeu e
viu que ainda estava na realidade, não tinha ficado louca. Combinou com Inês, a
amiga do escritório, de irem caminhar no parque, tudo que ela precisava era de
ar puro e sol para iluminar aquele estado de espírito em que se encontrava. Um
tom negro tinha ocupado a sua alma. Enquanto andavam, ouvia os sinos da igreja
próxima. Tinha uma urgência para ir até lá, um padre poderia acolher sua
angústia ou ao menos uma oração podia espantar o agouro que parecia
persegui-la. Rezou baixinho, enquanto a amiga falava do encontro da noite
passada. Ela estava sozinha mesmo acompanhada. Não ouvia o que a amiga estava
dizendo, nem percebia as pessoas à sua volta. Só queria voltar para casa e se
esconder. Apertava os dedos uns nos outros, as mãos geladas, a agonia
transbordava. Não tinha força para continuar, era hora de assumir que o mundo
não lhe pertencia mais. Não conseguia ter equilíbrio naquela situação. Chegando
em casa foi direto para o quarto, para a cama, debaixo das cobertas. Seus
pensamentos se revezavam entre o julgamento daquela atitude estranha e insana e
a entrega a todas as fantasias mais funestas já imaginadas por ela. O corpo
parecia se desprender do peso da matéria e um estado inebriante do seu pensamento
indicava o sono chegando. Ela evitava dormir, não queria se perder, ou melhor,
ser capturada por aquela que a espreitava desde cedo. Pensava em alguns
assuntos do mundo, notícias ou o que faria na próxima semana. Ela não era mais
dona dos seus pensamentos, eles eram atravessados por momentos da sua vida,
situações da infância, imagens descabidas da lua, estrelas ou mesmo caminhos
solitários. Os olhos sempre fechados, a mente enevoada, o corpo mole, a atenção
que insistia em querer ficar ativada. Perto da porta do quarto teve a impressão
de ver sua irmã. Não era real, mas o espírito, um fantasma daquela que há anos
já não fazia parte dos seus dias. Num golpe fugaz, aquela imagem se transformou
num espectro, uma sombra negra invadiu o quarto e a abraçou forte, envolvendo
seu peito, raptando seu corpo. Num sobressalto ela despertou, assustada, ou
melhor, apavorada. O que tinha sido aquilo, um sonho, uma impressão, um
fantasma? Pavor, ela não parava de sentir pavor. O peito apertado, a garganta
amarga, fechada, ela não respirava direito, não conseguia se mexer, estava
aprisionada por aquela sombra. Sentia o sopro gelado. Na nuca, o som agudo
entrava pelos seus ouvidos e produzia uma tortura nos seus tímpanos. Ela não
sabia o que estava acontecendo, não podia gritar. Era a morte? Era um demônio?
Estava sendo possuída? O que estava acontecendo? Ela não tinha força para sair
dessa situação. O corpo preso e a mente completamente dominada. Sua alma estava
em chamas, torturada, atormentada. Ela não tinha mais dúvidas, não tinha mais
como lutar, se entregou para aquele espectro, que podia ser um fantasma ou o
diabo, mas que já tinha tomado parte dela. Sentiu muito frio, o corpo rodopiava
num vazio, pendurada diante de um abismo, solta no nada. Cada vez mais escuro,
mais deserto, mais apavorante. Num instante viveu tudo que podia no nada daquele
mundo paralelo. Ela nem sabia se estava viva ou morta, ou o que estava
acontecendo ali. Uma luz intensa, fascinante, irradiou em toda a sua extensão e
ela parecia no mais pleno estado de enamoramento. Deslumbrada, tomada pelo êxtase
provocado da plenitude da entrega. Numa espécie de mágica, tudo parou, cessou,
silenciou, apagou, encerrou. Os vizinhos acordam com a sirene do resgate que
levou o corpo encontrado no apartamento 24-B.
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