Chegou o momento que ela pretendia adiar para o resto da vida, mexer nos
armários da mãe. Já tinha chorado a morte, entendido que isso acontece,
reclamado com os deuses, estava pronta.
A casa era pequena, não tinha muitos pertences e ela deveria ser racional e
se despedir de tudo, deixando que aqueles objetos, agora sem uso, pudessem ter
algum tipo de utilidade para outra pessoa.
Começou pelo guarda-roupas. As coisas estavam em ordem, mania da mãe. Abriu
as malas e colocou tudo ali, desde casacos até calcinhas. Fechou e olhou o
armário vazio. A mãe não tinha joias e foi apenas uma questão de praticidade,
tudo ia dentro da mala, junto com a mala.
Entrou no banheiro, as toalhas de banho e tapetinhos tiveram o mesmo
destino, mas estes foram nas sacolas de plástico grandes que tinha conseguido
nas lojas de produtos em atacado no bairro em que morava.
Na sala, os móveis seriam todos retirados pela casa de doação, mas os
enfeites foram colocados em caixas de papelão que trouxe do mercado. A mãe era
muito cuidadosa com seus bibelôs e ela seria também, mesmo que tivesse decidido
doar absolutamente tudo.
Na cozinha, retirou das gavetas as toalhas de mesa, guardanapos, aventais e
panos de prato. Percebeu que para as panelas, vasilhas e potes de plástico,
precisaria de mais caixas e sacolas. Antes de sair para buscá-las no carro,
abriu todas as portas dos armários para avaliar os eletrodomésticos e calcular
o tanto de coisas que ainda faltava embalar. Achou o que nem lembrava que
estivesse ali, o livro de receitas. Era muito velho, com folhas rasgadas;
borrado pelos ingredientes do preparo de algum quitute. Folheou, queria achar a
sua receita preferida. Tinha esquecido de pedir para a mãe ensiná-la a fazer
aquele doce que ela tanto comeu na infância, adolescência e vida adulta, e
amava.
Como será que o doce chamava? A mãe dizia que era o Pudim da Maria Helena,
mas isso não dava muitas pistas. Lembrava do gosto, mas era tudo tão amalgamado
que não podia distinguir muito um ingrediente do outro. Além do mais, quem era
Maria Helena? Ela nunca tinha ouvido que alguma amiga, ou parente, tivesse esse
nome. Mas continuou olhando atentamente as páginas e eis que 'Ele' brilhou
diante dos seus olhos. O nome era esse mesmo, escrito com letra bem feita,
caprichada. Ovos, leite, leite condensado, licor de anis, baunilha, raspas de
limão, parecia simples. Tinha também o modo de preparo, demorado, mas
aparentemente sem muitos segredos. Sorriu pela ideia de fazer o pudim naquela
hora, ali mesmo na cozinha da mãe, como uma traquinagem, como uma homenagem.
Ainda tinham alguns ingredientes nos armários, só faltavam ovos e leite que ela
foi comprar no mercadinho da esquina. Voltou e foi direto ao buffet da sala,
pegar o licor, que sabia onde ficava guardado. Com as bebidas achou uma
caixinha de papelão, decorada com decalques, bem no fundo, escondida. Abriu e
viu cartas, cartões, fotos. Suspirou, talvez encontrasse ali segredos da mãe.
Se perguntava se estaria preparada. Voltou para a cozinha, começou a fazer o
doce. A primeira parte foi fácil, bater todos os ingredientes no
liquidificador. Depois, caramelizar a forma de buraco no meio e colocar no
forno em banho-maria por ‘milhares de horas’. Enquanto o pudim cozinhava pegou
um cálice lindo, do jogo de taças que tinha sido presente do casamento dos
pais, e se serviu de licor. Imitava o jeito da mãe segurar a taça, mas também
lembrava que na infância ela brincava com os copos, mas só com água. Se sentou
no sofá, colocou a caixa no colo e foi olhando. Primeiro as fotos. Todas tinham
data e ocasião anotadas no verso. Os principais momentos da vida. Tinham poucas
fotos dela, apenas no nascimento, um ou dois aniversários e a formatura. Mas
tinham muitas fotos da mãe, na juventude, com amigos, com parentes, com os
pais, com seu pai e com outro homem. Curiosa foi olhar quem seria aquele
bonitão. Virou a foto e viu a data, não fez sentido, pois ela já era nascida e
estava na escola nesse ano. O nome era neutro, Carlos. Não lembrou de nenhum
Carlos. Na descrição da ocasião leu a frase: viagem para a praia. Engoliu,
sorriu. Pegou as cartas, ali deveria ter mais informações.
Entre os escritos nas folhas amassadas de tanto manuseio, leu bilhetes do
pai para a mãe, conversas e notícias de algumas amigas, confidências com
Carlos. As dele, eram cartas lindas, de amor, de proibição, de tristeza. Mas
ainda não sabia onde tinham se conhecido, o que tinha acontecido. Será que o
pai tinha descoberto o romance? Achou uma foto em que reconheceu o lugar.
Era o portão da escola em que tinha estudado quando pequena. Sentiu um choque,
uma espécie de medo, estava chegando perto de uma revelação, já sabia o que
era, mas não tinha coragem de pensá-la. Carlos era pai de um de seus colegas de
escola, o Mauricio. Ela lembrou. Estudaram juntos, faziam trabalhos um na casa
do outro. O pai dele, se ocupava do garoto todas as tardes e a mãe era
secretária e nunca aparecia. As memórias pareciam escorregar para a sua
consciência numa velocidade impressionante, não dava para conter mais nada, era
uma enxurrada. Ela ia muito mais à casa de Maurício do que o contrário. A mãe
ia junto e ficava lá, ajudando Carlos com alguns afazeres dele. Uma vez, eles
pediram para as crianças ficarem no quartinho de estudos que iam fazer um bolo
de chocolate. Sim, o bolo foi feito, mas eles iam com frequência para o quarto
no andar de cima, com a desculpa de ver um conserto na cortina ou pregar botões
de camisa. Ela lembrou que sentia algo estranho, mas não sabia o que era. Agora
sabe, a mãe teve um caso amoroso e fez sexo com outro homem enquanto ela
estudava com o amiguinho no quarto ao lado. A mãe, com essa história, 'pedia
muito' a ela nesse momento. Que revelação! Será que algum dia poderia entender? Se
fosse qualquer amiga, ela entenderia. nessa hora se viu uma menina, se sentiu desprotegida
e ao mesmo tempo parecia ter sido traída. Pegou o licor, encheu o cálice, tomou
de um gole e colocou mais bebida. É um fato, aconteceu. Ela precisava se mexer,
andar. Tudo isso era forte demais e parecia que ia explodir e sair do seu
corpo. Era alma e emoção demais para um corpo só. Foi até a cozinha ver o
pudim, demoraria ainda umas três horas. O que faria nesse tempo todo com as
provas da traição da mãe ali? Lembrou que no carro ela tinha uma mochila com
tênis e roupa de ginástica e que tinha um parque perto da casa da mãe. Foi
correr, precisava se desgastar. Uma hora depois voltou. Tomou um banho e usou
as toalhas que tinha guardado. Abriu as malas e pegou uma calcinha da mãe, não
tinha previsto tomar banho fora de casa.
O pudim cozinhava e ela continuava repassando as lembranças da caixinha,
tentando entender os sentimentos. Os pais viveram juntos até a morte dele. A
mãe foi uma viúva. Se perguntava por que ela se sentia traída. Era a filha e
seria a filha sempre. O que ela esperava ?
Voltou às cartas, se perguntava como terminou. Organizou a correspondência
por data, incluindo cartões postais e fotos. Na verdade a mãe tinha organizado
por grau de importância, deixando para cima o mais revisitado e embaixo o menos
importante. Ela foi reconstruindo a história que ali estava em pedaços. Era um
diário sem o formato tradicional. Sentiu orgulho e achou a mãe bem criativa.
Mas o ciúme, não conseguia se livrar daquele sentimento. No fundo ela queria
uma desculpa para a mãe, mas não tinha nenhuma, foi apenas isso, um caso, uma
paixão, algo naquela vida normal. Leu em uma carta de Carlos que a mãe o tinha
assediado e quase infartou. Como assim, a mãe tinha sido a agente de tudo? Ele
falava em tom simpático que aqueles sorrisos e piscadas eram insinuantes demais
para ele resistir. E, quando ela se ofereceu para ficar enquanto as crianças
estudavam, ele cedeu. A mãe tinha decidido ter um caso, não tinha sido tentada
e cedido à tentação. Aquela mãe organizada, comedida, que tomava apenas o licor
de anis e sofreu o luto do pai, não combinava com sorrisos e piscadas
insinuantes. Seguiu a leitura, o pudim começava a cheirar. Sentiu o cheiro e um
enjoo estranho. Ela fez uma careta. Parou. Lembrou. O cheiro era da casa do
Maurício. A mãe do menino, esposa de Carlos, a secretária que sabia só fazer
uma receita na vida, o pudim de anis. A mãe era amiga da mulher do
amante???!!!??? O buraco ficava cada vez mais fundo. Ela sentia uma decepção
enorme, mas sabia que isso era o moralismo dela que falava alto, que se fosse
sua amiga, ela entenderia totalmente. Agora iria até o fim. Estava na dúvida se
seguia a cronologia ou partia logo para a última carta. Ansiosa, pegou a
última. Era de Carlos, que dizia que aquela situação precisava ser definida,
pois ele tinha recebido uma proposta de trabalho em outro Estado. Ele dizia,
“Venha comigo, meu amor. Vamos viver como tantas vezes imaginamos. As crianças
são nosso maior bem e são pequenas, se adaptarão a uma nova situação. Maria
Helena e Cléber (o rosto sério do pai apareceu na sua cabeça), superarão, são
adultos, saberão continuar a vida deles. Eu quero viver essa história além do
que temos hoje”. Não tinha a resposta da mãe, mas imaginou. Tinha um
cartão assinado C. que era dele, com uma paisagem litorânea, ensolarada, com a
data que contava dois anos após a carta do pedido de união. Ele dizia apenas,
“aqui é lindo, você estaria radiante, não te esqueci, mas posso viver de
lembranças. Love, C.” Ela só se perguntava que mulher era aquela, que começa um
caso e decide abandonar um homem cheio de promessas de amor. Ela queria a mãe
viva para perguntar por quê? Era tarde demais.
O pudim estava pronto, cheiroso, ela desligou o forno e o deixou esfriando
em cima da pia. Mais uma dose de licor e foi pegar as caixas e sacolas para os
eletrodomésticos da cozinha. O celular tocou, perguntavam se o caminhão da casa
de doação poderia ir até lá retirar tudo. Ela disse que sim.
Juntou todas as lembranças, cartas, fotos e cartões, na caixinha de
decalques e colocou na bolsa, junto com o licor de anis e o livro de receitas.
Não quis doar os cálices, os embalou e colocou junto à sua mochila. Desinformou
o pudim bem na hora que os rapazes chegaram. Eles levavam tudo para o caminhão
e ela disse que no final comeriam o melhor doce do mundo, o pudim da Maria
Helena. Foi assim que ela voltou para casa, com um resto de pudim ainda na
forma de banho-maria, um livro de receitas da mãe-rainha do lar, os cálices que
tanto eram caros a ela, uma calcinha usada e a caixa de recordações da mulher
desconhecida, que era sua mãe.
Simone de Paula - 17/02/2017
Conto enviado para o concurso Sweek Leia Mulheres com o tema Descoberta.
Publicado agora no blog em homenagem ao dia das mãe que acontece no próximo domingo.