quinta-feira, 25 de maio de 2017

O-culpante, o-culpado

Ela seguia o processo costumeiro de eleger certo e errado em todas as situações. Se orientou pelo modelo moral, rígido e obediente de quem tem no formato padronizado a conduta apurada e bem educada. Mais do que polidez, era a obediência a quem nem lhe tinha ensinado a agir em causa própria.
Tomava como regra o que era excessão, seja para o bem, seja para o mal. Dizia "tudo, todos, nunca, nada", estabelecendo a universalidade que lhe servia de medida particular.
Seguindo o espírito progressista, investiu num curso de teatro para soltar um pouco o corpo e aproveitar o improviso para despertar a criatividade.  O medo de ficar nua e ser agredida verbal ou fisicamente eram os fantasmas que insistiam em lembra-la da ousadia que a mantinha ali. Era mesmo inusitada e estava pronta para o que der e vier, pensava.
Mas a surpresa veio num exercício de cena em que o diretor do grupo pediu para todos colocarem as roupas separadas no camarim. A imaginação voava, frisson, o que encontraria ali?  Pendurados em cabides estavam ternos de  cores escuras, sapatos bem lustrados e gel para passar nos cabelos. Todos pareciam usar uniforme. Ela se impressionou em pensar que aquele era o tipo de roupa que usava diariamente na empresa. Não era exatamente um terno, mas seguia o modelo repetido de corte e cores mais escuras, sem destaque. 
Todos vieram para a sala de ensaio e o diretor posicionou cada um de uma forma. Ela, em pé, mal sabia o que lhe esperava. Obediente, seguiu a ordem de não falar nada, não relaxar a postura, se portar como um soldado em posição de sentido. As instruções foram dadas de maneira bastante discreta a cada um dos alunos. O elemento surpresa estava garantido, ninguém sabia ao certo o que aconteceria ali. E ela, era a que estava mais mal informada, pois nem imaginava que personagem interpretaria.
A cena começou. Cada um falava na sua vez. A linguagem era técnica, com caráter jurídico. Ela entendeu, estavam num tribunal. Olhava atenta, queria saber qual seria a deixa para sua entrada. Começou a desconfiar, o diretor não tinha lhe  indicado nem a deixa, nem a fala. Olhava os colegas, olhava o diretor, todos pareciam ignora-la. Ansiosa, respirava fundo para manter a rigidez de postura. No avançado do processo, as falas repetidas, nada parecia fazer sentido. E então, chegou a hora, ela foi chamada. Um dos advogados da cena começa a interroga-la. Ela não sabia do que se tratava e foi respondendo as perguntas de improviso. Angustiada, não sabia de que crime era acusada. Tentava descobrir, se colocando como inocente, negando a autoria de qualquer delito. As perguntas cessaram, ela voltou ao seu lugar estático de origem. O juiz então inicia a sentença, dizendo não ter dúvidas sobre a autoria do crime e ainda complementou que houve dolo. Ela estava completamente de mãos  atadas antes mesmo de ser algemada. Quis falar, tentou, mas recebeu reprimendas, pois ali, ela não podia falar, seu tempo tinha esgotado durante o depoimento. Seu advogado, declaradamente fraco, denunciava estar à frente do caso de uma ré culpada, sem defesa.
A situação se encaminhava para o final da sentença quando ela ouviu da boca da juíza, "declaro a ré culpada!" 
Num estado desesperado, percebendo que alguém se aproximava para prende-la, ela grita, "culpada de quê?" Ali, personagem e personalidade se misturaram e ela se imaginou atrás das grades. A juíza sorriu e respondeu com um tom de grande satisfação, "culpada por ser vítima." 
Ela não entendeu nada, foi levada para o fundo da sala, algemada, atônita. Todos aplaudiram a si mesmos, rindo satisfeitos com o belo exercício de improviso. Ela estava muda, sem conseguir voltar ao personagem de si mesma que tinha inventado. A polidez, a educação, a sociabilidade, tudo tinha desmontado.
Voltou pra casa chorando muito. Não sabia porque um exercício tinha tocado tão fundo. No caminho, não conseguia olhar pela janela do carro e emitir juízo sobre pessoas ou atitudes como era costumeiro.  Não sabia como voltaria ao grupo, tamanha vergonha que sentia. Entendeu a nudez no que foi exposto e revelado. Agressão verbal e física, podia ser muito mais dolorida e desmoralizante do que imaginava. Se viu só com sua sentença, consciente da pena que deveria cumprir. 

Simone de Paula - 25/5/2017

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