quinta-feira, 9 de março de 2017

Dona Flô e seus dois narizes

- Flô para os íntimos!
Era assim que ela se apresentava e caía na gargalhada. Adorava uma piada, um trocadilho. Não perdia a chance de fazer graça. Ria de si mesma sem precisar esperar pela diversão da audiência.
Aos trinta anos, Florinda, a Flô, tinha sofrido um acidente doméstico que lhe custou o nariz perfeito que tinha ganhado de nascença. Na saída do banho, ela escorregou e foi de cara no batente da porta. A dor era indizível, e na hora, realmente ficou muda. No hospital, o cirurgião plástico lhe deu um novo nariz, mas ela não conseguia mais viver sem pensar todo dia e toda noite no belo nariz que já tinha exibido no rosto. Se olhava no espelho e sabia que tudo nela era sem graça. E agora, até o nariz entrava nessa categoria. Ela tinha olhos castanhos, cílios médios, rosto oval, lábios levemente carnudos. E agora, nariz arrebitado. Nada mais chamava a atenção nas suas feições. Ela pensava que poderia ter uma cor de pele melhor, ou um olho de cada cor, mas não, era básica, padrão. 
O novo nariz cumpria suas funções, lhe acompanhava,mas não lhe divertia como o outro. Ela gostava de ver como algumas pessoas lhe olhavam com espanto quando ela virava o rosto de repente. Era comum sugerirem uma operação plástica. Tudo porque ela tinha um belo e imponente nariz. Se aqui fosse terra de Almodóvar, ela seria sua musa. Ou, pelo menos, faria uma ponta nos seus filmes.
Para compensar o estrago que o acidente fez e o médico confirmou, ela agora escolhia outras formas de destaque. No figurino, roupas coloridas e estampadas. Queria sedas como as de quimonos com padrões de natureza. A maquiagem trazia exuberância de cores e tons. Em certas ocasiões, ela usava brilhos e  glitter em excesso. Seu comportameto tinha o tom jocoso de quem só faz piadas. Muitas vezes, infames.
Flô não nasceu bonita, alguns a classificavam como exótica ou diferente. Mas a mãe não se assustou com os traços mais marcados naquele rosto de menina. Ela foi olhada com admiração e criada entendendo que era diferente e isso lhe dava um plus. Ela não escondia o que era fora do padrão, ela exaltava suas marcas da diferença. Mas após o acidente, precisou de alternativas para destacar o que era mais partilar nela, e que por obra do destino, ela tinha perdido.
Já tinha pensado reverter a cirurgia, mas tinha ficado num impasse. Passou trinta anos decidida a não mudar nada no seu corpo para se adequar aos modelos. Agora ela tinha um nariz modelo. Se a vida tinha lhe alterado as feições, seria incoerente ela querer fazer um procedimento para insistir naquilo que não mais lhe pertencia. 
O nariz tinha ido embora, morrido, só a assediava diante do espelho e quando ela fechava os olhos antes de dormir, nostálgica. Lembrava dele, sorria, sentia prazer por já ter portado um nariz daqueles. Mas ao acordar, respirando bem, exibia seu estilo e tentava ficar em paz. A vida poderia brincar com ela muitas outras vezes, ela saberia ria da piada do outro. Ela era assim, que bom!

Simone de Paula - 09/3/2017



Conto inspirado no livro 'um, nenhum e cem mil', de Pirandello e também em 'Dona Flor e seus dois maridos', de Jorge Amado. E na atriz Rosy de Palma, nos filmes de Almodóvar. 


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