- O sobrenome não...o sobrenome nãoooooo!
Ela gritava sem parar, enquanto era levada pela polícia,
algemada e arrastada pelas ruas imundas da cidade. Bem vestida, era notável que
se tratava de uma dondoca.
Tudo começou há mais de quinze anos. Se conheceram num hotel
à beira mar na côte d’azur, mais precisamente na cidade de Nice. O mar azul, o
vinho gelado, o clima de romance sofisticado. Tudo que ela sempre sonhou para
deixar no passado a origem humilde que tanto a humilhava.
Ele tinha pinta de galã. Alto, magro, sorriso tímido e um
figurino discreto e elegante. Ela uma jovem alegre, louca para viver
intensamente a primeira experiência na Europa. Dia de verão, ela portava saia
curta e blusa fina, sem muito pudor.
A meninice dela o encantou. Passearam pelos cinco dias em
que ele tinha trocado o tempo cinza londrino pelo colorido do mediterrâneo. Ele
não avançava o sinal, por mais que ela insistisse em encostar todas as partes
do seu corpo no dele.
Na despedida, um beijo longo e o pedido dele para que ela o
visitasse antes de voltar ao Brasil.
Pedido feito, pedido aceito.
Ela descolou o dinheiro da passagem e foi encontrá-lo para
viver o romance da sua vida. A última semana de férias se transformou em um ano
de convívio. Depois disso, o casamento formalizado, com direito à família e
amigos dele. Ela, abandonou suas origens e foi viver a vida de princesa na
Inglaterra.
Os anos passaram, veio o primeiro filho, um menino robusto e
sorridente. Ele era apaixonado por aquela mulher, parecia enfeitiçado por
aquela energia, aquela alma que extrapolava o corpo. Nunca tinha se imaginado
pai e agora segurava o filho nos braços e passava os finais de semana no parque
com eles.
Ela não via nada disso, se comportava como uma alpinista
social e focava apenas em manter o status de europeia, recém conquistado.
Vendo-o perdidamente apaixonado pelo filho, logo resolveu a situação com mais
uma gravidez. Desta vez, uma menina. Estava completo, a vida dela estava
garantida para sempre.
No fundo ela o achava meio bobo, porque atendia todos os
pedidos dela. Além disso, ela se sentia bem esperta, tendo obtido tudo o que
uma mulher gostaria de ter. Mas ela mesma não era capaz de enganar a si mesma.
Sabia que o amor declarado por ela ao chegar naquele fim de férias em Londres
estava longe de ser verdadeiro. Ela viu no gringo uma oportunidade de sair da
vida vazia e pobre que tinha na sua terra natal. Todo o desejo que ela encenava
nas noites de amor, de sexo ‘caliente’, como ele dizia num espanhol mal
pronunciado, não causavam nela nenhum tipo de prazer.
A família feliz, com uma esposa deprimida, que aos poucos
foi deixando aparecer o estado emocional em que se encontrava. Ela não estava
bem. Ela não gostava dele, nem dos filhos dele. Mas adorava Londres, a Europa,
a distância do Brasil.
Ela não podia revelar o motivo de sua tristeza, porque o
conhecia bem e sabia que ela estaria acabada se revelasse só estar com ele pela
posição social. Ele, imaginando que aquela tristeza era falta da cultura, do
idioma, da família, planejou, sem avisá-la, uma mudança profissional. Conseguiu
uma boa vaga no Brasil e anunciou a boa-nova. Ela teve um choque. Chorou, se
irritou, o ameaçou e quase o agrediu. Ele não entendeu o que estava acontecendo
e levou-a ao hospital. O médico receitou um calmante e passaram o mês seguinte
num estado silencioso. Mas, a mudança para o Brasil aconteceria, não tinha o
que fazer.
Chegando aqui ela resolveu se mostrar magoada, ofendida,
enganada. Despejou nele todos os xingamentos e ofensas que poderiam ser
dirigidas a ela. “Traidor, oportunista, mentiroso.” Tudo que já tinha pensado
sobre si mesma agora saía de dentro dela com a ferocidade livre de quem podia
ouvir suas verdades sem ter que responder por elas. Ele aceitava os ataques,
ela tinha razão, ele tinha feito tudo isso. Ela foi aproveitando para
denegri-lo mais ainda, e ainda com o uso da chantagem, dizendo não tornar tudo
aquilo público pelos filhos. Ela se sentia viva, podia cuspir todo veneno que
tinha habitado seu ser por dez anos. Criou a personagem perfeita e agora podia
fazer o que quisesse. Ela o culpava e ele se sentia culpado. Ela tinha uma
satisfação especial em ter transformado tão bem a situação.
O sexo era terminantemente negado. Os passeios, apenas nos
lugares que ela queria. As compras em lojas de grife aumentavam a cada mês. Ela
dizia o que queria e ele a atendia. Ela sorria escondida quando isso acontecia,
pois agora tinha a garantia de ter tudo que desejava, mas sem ter que dar nada
em troca. Mas o vicio da mentira a pegou fundo e ela não sabia mais reverter a situação.
Deixá-lo culpado era a única forma de viver a partir daquele momento.
Numa manhã fria de agosto, ela acordou e ele não estava na
cama. Achou estranho e saiu procurando pela casa. Ele não estava em nenhum
cômodo, não estava ali, nem tinha dormido ali. A segurança que ela tinha
carregado dentro de si há anos se quebrou e agora a perfurava por dentro. Era culpa
e medo ao mesmo tempo. Voltou pra cama e ficou ali, parada, silenciosa,
esperando até ele chegar. Os filhos acordaram, ela não saiu do lugar. Era uma
víbora esperando a presa para dar o bote. Ele não apareceu por três dias
seguidos. No quarto dia, entrou em casa, pegou uma mala, colocou algumas peças
de roupa e anunciou.
- Existe outra na minha vida. a conheci no último final de
semana. Não posso mais ficar ao seu lado.
A máscara caiu. Ela não podia mais mentir. A surpresa a
tomou naquele momento. Ela gritou, discutiu, o estapeou. Ele aguentou. E saiu.
Alguns meses depois, assinaram a separação, ele deixou
alguns bens para ela. Mas ela não aceitou, queria discutir pensão, filhos, tudo
que podia. Mas não houve acordo e ela teve que se calar. O olhar dela se perdia
num mar de decepção e perdas. Ela não se olhava mais no espelho, nem percebia a
presença dos filhos. Sua mãe veio cuidar das crianças e ela imergiu num sono
profundo, assumindo a depressão que tinha se instalado desde quando viviam na Europa.
Ele seguiu como o combinado legalmente, pegava as crianças
na escola duas vezes por semana, revezavam os finais de semana e tinham um mês
de férias cada um. Ele cumpria, ela nem percebia. Seguiu sua vida com a nova
mulher, que parecia um bálsamo diante da opressão que a mãe dos seus filhos
causou nele durante tanto tempo.
Num final de semana de outubro, combinou que pegaria as
crianças um dia antes, na escola, para viajarem no final de semana. Ela pediu
para ele pegá-los em casa, pois ela queria se despedir. Ele topou. Ele chegou
na casa dela, tocou a campainha e entrou. Ela estava sozinha e logo que ele se
aproximou ela o esfaqueou. Uma, duas, quinze vezes. Ele caiu ensanguentado e
ela largou a faca em cima do corpo e saiu pelas ruas, a pé. Parecia desconectada
de si mesma.
Policia, investigadores, vizinhos. Quando ela chegou em casa
novamente, todos esperavam por ela. Que confessou o crime.
Durante o processo, o advogado tentava alegar insanidade e
ela dizia não estar louca, mas que ele não viveria sem ela, afinal, ele tinha
prometido dar-lhe uma nova vida e a tinha tirado.
O juiz definiu a pena e antes do anúncio da sentença
perguntou:
- mas afinal, porque você o matou, realmente?
- na separação ele fez questão de retirar o nome dele do
meu, isso era inaceitável, o sobrenome eu não daria de volta. Ele poderia ficar
com tudo, com filhos, tudo, mas o sobrenome, isso ele não podia me tirar, não
podia, não, isso não...
Simone de Paula – 17/11/2016
Conto inspirado na frase “um cuerpo corresponde a la
extensión, um cuerpo corresponde a la exposición”, de Jean-Luc Nancy
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