Freqüentava as missas religiosamente aos domingos. Desde cedo, tinha sido orientada a seguir toda a ritualística que envolvia aquele sistema de fé.
Chegava à Igreja e sabia onde sentar, como se comportar, que
cara fazer ao rezar e a postura certa na hora de comungar. Era uma pequena
católica.
No cerimonial mais caprichado da missa principal do domingo,
os cantores do coral soltavam a voz e inundavam o templo com a potência
encantadora daquela melodia. Ela acompanhava tamborilando alegremente no assento
do banco de madeira. Olhava profundamente para os vitrais que se iluminavam sob
a luz do sol e sentia as notas penetrarem na sua alma.
Na adolescência, pensou em ser freira, almejava o sentimento
de plenitude que experimentava durante as missas. Desistiu, imaginando seguir a
carreira de cantora, ou instrumentista.
Estudou muito e entrou na faculdade de Música. Aprendeu a
tocar instrumentos, conheceu biografias e teorias de grandes mestres do
universo sonoro, vivia animada com a possibilidade de ser capaz de produzir em
si mesma aquele sentimento que conhecia desde a infância.
Treinava muito, todos os dias, mas não conseguia sentir
aquilo que imaginava e lembrava. Acreditava que isso acontecia pela inexperiência,
ainda era aprendiz.
Ela não falava nem para a família e nem para os professores
ou colegas musicistas, mas vivia frustrada, decepcionada, pela falta que sentia
no peito, na alma.
Tentava chegar aos nomes daquele sentimento como forma de
poder se apropriar dele. Êxtase, amor, paixão, inspiração, entusiasmo, encanto,
deslumbramento, enlevo, arroubo, arrebatamento. De pensar em cada um, experimentava
novamente o que tinha sentido. Mas como
era possível ela não atingir nenhum deles enquanto tocava a música que mais
amava, ou cantava no tom mais sutil que poderia conseguir?
Obstinada, tecnicamente se tornou muito boa. Talentosa,
afinal vivia por uma paixão, foi convidada para participar de um festival de
inverno. Ensaiou muito e estava ansiosa para ver se diante do público poderia
ser tomada novamente.
Mas a vida é mesmo uma pregadora de peças e ela, a dez dias
do festival, pegou um resfriado forte, seguido de dor de garganta, tosse e
febre. Nos primeiros dias da doença, se sentia entregue a um som, totalmente inebriada
por um bálsamo sonoro. Era sonho, delírio ou realidade?
Foi ao médico, precisava melhorar e retomar os últimos ensaios.
Lá, na sala de espera, bastante lúcida pela apreensão em que se encontrava,
começou a ouvir uma música vinda da casa ao lado. Parecia um ensaio, uma aula. Sabia
que dali alguém cantava e seu corpo começava a ser afetado, animado, excitado. Aquela
voz grave do cantor, assumindo com força a bela canção italiana, permitiu a ela
perceber que nunca, jamais, o êxtase poderia ser produzido por ela mesma. Era
no encontro com o outro, na surpresa do desconhecido que o arrebatamento pode
se dar.
O reconhecimento a tranqüilizou. Pensou que se ela sentia
isso no encontro com o outro, sua habilidade musical poderia produzir também
aquilo em mais alguém. Como por encanto a dor passou, a garganta nem mais
parecia raspar. Ela suspirou e decidiu: serei uma musicista!
Inspirado na bela canção italiana cantada em voz grave todas as tardes da semana.
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