A tempestade se aproximava avassaladora. Rajadas de vento
sopravam com toda força sacudindo árvores, estremecendo janelas, agitando seu
coração.
O estrondo dos trovões e o brilho intenso dos relâmpagos a
fizeram fechar as cortinas, num impulso automático de se proteger daquela
ameaça da natureza.
No entanto, quanto menos ela enxergava, mais ela se agitava.
Parecia que algo a tomaria, engoliria, destruindo seu corpo frágil e sua alma
delicada.
Durante toda a sua infância, viveu naquele castelo imenso,
sozinha, sem crianças, sem adultos. Apenas serviçais a proviam nas suas
necessidades. E, com o passar do tempo, ela os dispensou, um a um, buscando
declarar a solidão em que sempre esteve.
Herdou o castelo, mas não herdou os habitantes do castelo.
Perguntava-se por que um lugar tão grande para ninguém viver ali. Ela também
era ninguém.
‘Cabrum!’, um sobressalto num estrondo mais forte a tira de
um devaneio. Imaginava hordas de pessoas adentrando e tomando o castelo. Vivia
um misto de medo e desejo de perder toda aquela proteção, queria que aqueles
muros viessem abaixo e que ela pudesse realmente ver além, além das janelas, do
jardim, dos portões. Queria ver tão além
que se mantinha sempre no andar mais alto do castelo, confinada no cubículo que
servira como quarto do castigo.
Ela gostava de ficar ali porque sentia que preenchia o
lugar. O espaço pequeno era bastante adequado à pessoa que ela era: pouca
superfície e pouco recheio. Um corpo
pequeno com poucas histórias, poucas ideias. Gostaria de saber o que tinha sido
esse quarto pequeno no topo da torre. Fez muitas pergunta a todos com quem
conviveu, mas ninguém lhe respondeu. Fuçou nas gavetas e baús, achou muitas
informações, mas nada sobre aquele espaço, o lugar que ela escolheu para
habitar, seu canto. Como poderia saber de si se não sabia do lugar que
assumiu como seu?
‘Crash!’, mais um estrondo, agora tão forte que ela jurava
ter balançado a torre, será que ela cairia de lá, será que o vendo seria tão
forte a ponto de derrubá-la do seu cantinho?
Já tinha inventado várias associações para sua condição: uma
gaiola com um passarinho sem asas, um aquário com um peixe solitário, uma
galinha botando ovos. Achava curioso só conseguir pensar em animais, por que
ela não se achava parecida com gente?
Desde cedo foi ensinada. Sabia ler, escrever, tocar, pintar
e bordar. Sabia também como se comportar com elegância à mesa de jantar, como
dançar uma valsa e também como portar um belo vestido. Tudo isso fora ensinado
por diversos professores, que vinham, ensinavam e iam embora. Certa vez se
afeiçoou a um professor muito sério. Ele a ensinou a tocar flauta. Enquanto ele
falava ou mostrava como ela deveria segurar ou manusear o instrumento, ela
observava seus gestos, o brilho dos seus olhos, tinha certeza que tinha uma
personalidade muito mais ousada do que aquilo que ele mostrava. Passava os dias
nas aulas e as noites sonhando, supondo quem era aquele homem misterioso que se
expressava através das peças de Mozart.
Sem aviso, um belo dia, apareceu uma professora de piano em
substituição ao belo senhor da flauta. Foi bem decepcionante, o piano nunca foi
seu principal instrumento. Como era teimosa aquela mulher exigente, que vivia a
respirar fundo quando se errava uma nota.
Pensando bem, aquele ar todo que passava pela flauta, que
produzia aquela beleza de som, a levava muito longe, além daqueles muros. O
coração do pássaro voava alto e se inundava de paixão e desejo.
Ela foi crescendo. Como já sabia tudo que precisava, os
professores foram sumindo. Sempre se perguntou quando usaria tudo que aprendeu.
Afinal estava isolada, sozinha, com quem dançaria uma valsa? Para quem tocaria Mozart?
Sabia que algo não estava certo, mas não imaginava o que
poderia estar errado.Tempestade forte. Muita água caía do céu, escorria
pelos vidros, devia fazer grandes poças no jardim.
Pensou no professor de flauta, aquele homem misterioso. Relembrou sua certeza
de que ele era ousado. Tudo isso provocou naquela alma frágil um desejo de fazer
algo inusitado, inesperado. O que ela poderia fazer? Já estava saltitando pelo
pequeno dormitório e o corpo se agitava cada vez mais. Tomada pela falta de ar
que já começava a sentir abriu as cortinas num gesto brusco e veloz. Olhou a água
escorrendo pelo vidro. Viu a si mesma se misturando com aquela imagem. Pareceu sentir aquela água
escorrendo pelas suas mãos, pelos braços. Precisava de ar, queria respirar, produzir um
som como o da flauta.
Abriu a janela, sentiu o vento, a chuva, tudo inundou seu rosto e
aquele pequeno cubículo. Olhou em volta, a imagem daquela tempestade mudou, o
tormento da ameaça se transformou num convite a um baile cheio de vida, de som,
de luz. Aquele quarto realmente ficou pequeno demais, não para o corpo ou para
as ideias, mas para o desejo. Ela queria, precisava ir lá fora, sentir o corpo
todo envolvido pela presença daquele presente, daquele céu e terra.
Tudo era tão urgente que ela tinha apenas dois caminhos, ou
pular da janela ou descer desesperadamente o monte de degraus que a distanciava
da realização daquele desejo enorme. Tinha pressa, o corpo gritava. Ele estava
tão vivo que precisava se mover, o salto pela janela impediria o corpo de
participar ativamente dessa louca aventura, ela opta por descer, correr em
direção ao lado de fora.
O corpo se move, numa corrida desenfreada. A alma se
entorpece e ela se deleita com tanta emoção. Ela chega em frente a porta que dá
acesso ao jardim, ao mundo. Sem pensar,abre e sai, para e deixa que tudo aquilo
continue sem tempo, sem juízo, sem medo.
Ela não poderia dizer quanto tempo durou esse estado de
prazer, mas certamente foi o bastante para mudar de vez aquela existência.
Deixou pra trás aquele alguém que esperava uma história para ser. Assumiu seu
caminho, sozinha, em direção ao além.
Costumava contar que nasceu num dia lindo, durante uma
tempestade amedrontadora. Misturava histórias do passado e do presente criando
uma nova linha do tempo para sua existência. Inventava as mais divertidas
situações para aquele quartinho em que viveu. Criou uma árvore genealógica,
decidindo quem eram seus antepassados. Confirmava tudo com as informações
tiradas dos baús, das gavetas e de todos os livros lidos e canções aprendida,
além das fantasias anímicas que fizeram parte da sua solidão. Fora daquele
castelo, percebeu a riqueza que existia lá dentro, mas que era impossível de ser
compartilhada quando não havia liberdade e nem um outro que queria saber.
Simone de Paula - 28/1/2015
Conto inspirado nos concertos de Brahms e Liszt e nessa pintura que não sei de quem é.
Nenhum comentário:
Postar um comentário