sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Era uma vez

Abril de 73, do século passado. 
Era uma manhã ou tarde de sábado, provavelmente, porque na semana não era comum acontecer isso. Meu pai resolveu mexer no gravador. Tinha comprado há anos e ainda ficava ali, por usar. 
Meu pai adorava eletrônicos de registro, tipo câmeras fotográficas, gravadores de áudio para fita de rolo, projetores de slides. Ele também gostava de carros e futebol.
A brincadeira era entre ele, mamãe e nós. Nós, os filhos, ainda éramos três: duas meninas "chatas" (mentira isso, mas mamãe  dizia para criar uma culpa, mâe de escorpião) e um bebê de oito meses. 
Papai começa, fazendo uma claquete, data da gravação, ele nem era da chamada área do áudio-visual, mas já entendia dos paranauês, taurino metódico, registrando tudo.
Primeira a falar, eu. Ele chama, "Simoninha", e pergunta minha idade. Eu respondo,"dois anos". Eu tinha oficialmente, dois anos e meio. Depois pergunta a idade da minha irmã mais velha, a Cristiane. E eu, "cinco anos". Na hora que pergunta do meu irmão, dá um tilt, e a resposta é, "ele é bebê", não tem ainda 'anos'.
Muita excitação na minha voz, riso, animação pra falar e responder certinho. Imagino meu corpo agitado, achando aquilo uma maravilha.
Mamãe entra no áudio, canta musiquinha, eu canto também. Ela aproveita e dá aquela reprimida básica, com uma certa ameaça, mas também fala tudo que eu tenho que fazer pra ir na festinha do dia seguinte. Anos de análise depois e isso é ela, talvez não importe mais.
Ontem essa mensagem do passado chegou, via whatsapp, mídia nem imaginada na ocasião, provavelmente. Ouvi tudo isso que estava perdido em uma das fitas do velho gravador. 
Meu registro veio a mim, como aquela carta pedida, sem remetente, mas certeira ao destinatário. 
Não tiro o sorriso do meu rosto desde então.  Foi muito, muito bom estar ali e ouvir agora isso aqui. 
A cena tinha luz solar, pulsão de vida, alegria de infância, tranquilidade do tempo.
Quando ouvi de longe a voz do meu pai, o nome dele saindo da boca da minha mãe, eu pude ressuscitar alguém e ainda reviver um tempo. Depois ele conduz a gravação e vejo nos detalhes da fala, as expressões típicas, era ele ali.
O jeito de falar, a impressão de que tudo está certo, sob controle, que o mundo não é cruel. Sim, toda segurança estava nele.
Eram tempos sombrios, de ditadura militar. Hoje estamos passando novamente por um mundo que espera fazer um acerto de contas com a liberdade. 
Diante desse presente do tempo, talvez de Júpiter em capricórnio e Lua em Câncer, o céu marcando através dos astros esse encontro, espero que nossas crianças e bebês hoje sejam preservados do sombrio, para que possam ver sol no mundo interno deles e viver um futuro com muita luz e inventividade. Temos futuro sempre, porque houveram muitos passados.

Simone de Paula - 7/2/2020

Nenhum comentário:

Postar um comentário