sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Dois

Na adolescência ela assumiu o apelido ‘Dois’. A escolha foi um tipo de ironia que todo jovem gosta de fazer e funcionou muito bem nessa fase tão difícil de inserção social. A ideia veio quando ela tirou um dois na prova de matemática, matéria em que seu desempenho sempre tinha sido exemplar. Era o destaque dela em casa e entre os professores. Mas, quando tirou o dois e viu que a turma do fundão curtiu, ela mesma resolveu se rebelar e bancar a desinteressada pelos estudos. Queria uma nova cara, um novo estilo, o dois veio ajudar a conseguir isso. De brinde ela ganhou a mãe no seu pé e o pai falando que ela só dava desgosto. Reclamava, gritava, se trancava no quarto, estava feliz, não pelos conflitos, mas porque finalmente agradava mais as pessoas que ela admirava do que os pais que ela obedecia.
Foi inventando um monte de histórias com o dois. Era segunda filha, os pais também eram filhos do meio na família deles. A casa tinha o número dois no final. Começou q andar de tranças, duas, brincando feliz com a identidade que a representava tão bem. Nas provas de matemática voltou a ter boas notas, porque entender aquele raciocínio era mais forte do que ela e nem se quisesse conseguiria ter notas baixas.
Como não podia deixar de ser, arranjou uma melhor amiga, eram duas. Mas todo o esquema seguro deu um tilt quando numa festa, um cara que elas não conheciam, mas que Dois ficou bem interessada, a provocou dizendo que se ela era a Dois, a amiga deveria ser a Um. Pane no sistema, ela não pensava assim nessa relação das duas. E mais, como ela encabeçava as escolhas, ali ela era Dois, a primeira. Sentiu ciúmes da amiga, porque notou que o cara olhava com mais atenção para ela. Sentiu raiva do cara, porque ele tinha sido esperto demais naquele jogo. Sentiu-se meio boba, pois as peças tão bem encaixadas do quebra-cabeças Dois tinham se soltado. Naquela noite Dois voltou pra casa chateada, não sabia muito como reverter aqueles sentimentos confusos e incômodos. Não queria abrir mão do que tinha conseguido com o apelido, mas não sabia como sustenta-lo diante da indiferença do outro. Afinal, se questionava por que o Um valia tanto na sociedade. Instigada pelo tema foi pesquisar. A internet era um sem-fim de assuntos e artigos que tocavam nesse tema. Mas o que mais se repetia era sobre a questão feminina, o tal segundo sexo. Percebeu que pelos ciúmes tinha se afastado da amiga, que não podia ser responsável pelo gracejo do cara que a provocou. Nem ele podia ser execrado por apenas dizer algo que era visível e ela tinha montado assim. O outro só revela o que a gente nem vê bem. Se acalmou, era tempo de olhar para frente, se rebelar menos e continuar escolhendo, sabendo que nenhuma escolha é absoluta. Tem sempre o outro lado: lado dois, lado B, qualquer das opções que se escolha há um tanto que não é positivado e jubiloso, mas enigmático e sombrio e que só se revela na surpresa e na decepção do que poderia ser um todo. 
A vida não dá garantias.


Simone de Paula - 15/10/2017

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