Sou Eugênia, tenho dois filhos,
três diplomas, doze anos na empresa em que trabalho atualmente e em cargo de destaque. Ganho bem,
moro bem, me visto bem, mas estou bem mal. Mais do que seguir acompanhando o coro do
que muitas colegas de trabalho dizem, sobre não ter tempo para filhos, família,
vida pessoal, eu estou mal pela minha última frustração. Concorri a um novo
cargo, uma promoção. Era o certo a fazer. Eu era bem avaliada e bem cotada para
a vaga, e passei. Isso poderia me deixar bem, feliz. Mas não. Fiquei pensando muito no que poderia
significar esse constrangimento que
estou sentindo diante da conquista. Saquei depois de um tempo, conversando com
alguns amigos próximos, com quem posso falar da vida no meio corporativo. Eles
me contaram das suas últimas promoções, como tinha acontecido e ali,
ouvindo, percebi nitidamente uma diferença brutal: ninguém pergunta pra eles
sobre eles aguentarem determinada demanda da vaga. Eu, desde a minha primeira
promoção, há quinze anos, sou questionada sobre dar conta plenamente do que é
exigido naquela posição. Depois do João, meu primeiro filho, a coisa ficou mais
acirrada. Ninguém apontava o dedo para a família, o filho, mas perguntavam se
eu achava que conseguiria assumir tanto, pois tinha 'escopo' de vaga acima
daquela que dava o título à cadeira, mas como só tinham aquela posição, tinham
que assumir isso. Aliás, tinham não, eu tinha. Depois do Pedro, o segundo
filho, a coisa ficou mais forte, afinal, quanto mais eu subia, mais eu assumia.
Eu explicava que tinha suporte para dar conta da vida doméstica, mas ao mesmo
tempo, colocava que queria ter tempo livre. Mas afinal, quem não quer ter isso,
quem não tem isso: casa, família, tempo livre? Não fizeram essas perguntas para
meus amigos, ou melhor, para os homens. Eles parecem inclusive ter direito a isso, pois nem os questionam
sobre isso. Assumi o cargo. Mais do que dar conta das demandas que receberei,
terei que me defender de olhares cobradores, que devem controlar o horário que
meus emails são enviados, pois esperam realmente que sejam após as dez da noite
ou aos finais de semana. Enlouqueço a minha equipe, porque devo prestar contas
de que trabalho além da conta. Ousei, devo pagar por isso.
Sou Everton. Sou gay. Até hoje é
uma crise isso em casa. Primeiro eles se separaram, depois eu assumi. Parece
que precisavam romper aquela união para poderem culpar um ao outro pela minha
sexualidade. A minha escolha ainda parece ter sido definida por eles. E o pior,
pelos erros deles. O pai diz que a mãe mimou demais. A mãe diz que o pai foi
ausente e omisso. Nenhum deles olhou e pensou: “uau, esse cara, meu filho, é
capaz de amar”. Foi difícil no começo, porque eu mesmo achava que era o produto
dos erros, portanto, errado. Mas quando fui percebendo olhares de carinho e
desejo, fui entendendo que eu era produto do amor que eles sentiram e agora
parecem incapazes de sentir de novo. Do amor deles surgiu o rancor. Se apegam
tanto a isso para continuarem juntos. Acho que foi mais difícil falar para a
minha mãe. Meu pai estava longe, se sentia tendo falhado, já carregava a cota
dele. Ele é de uma geração que deve aceitar, porque a sociedade cobra dele
isso. Mas minha mãe. Até hoje eu olho para ela e fico tentando caçar o desejo
naqueles olhos, naquele corpo. Ela sim é um produto das repressões que sofreu e
conserva. Inspiro as pessoas com a minha vibe, minha energia. Mas minha mãe me
olha, sorri, me abraça, mas não tem o calor que eu gostaria de receber. Minha
quentura não derrete aquele coração. Mas a dureza dela me abafa. Coisa
estranha, amor de mãe que esfria. Ela deveria falar um pouco do que está lá,
entalado.
Meu noivo se matou. Faz um ano.
Ele se jogou da janela enquanto eu dormia no quarto. Deixou um bilhete do lado
do copo de água que ficava toda noite no criado-mudo ao lado da cama. “foi por
você”. Foi por mim? O você sou eu? Não morri junto, mas fui condenada pelo você
dele. Não sei o que ele quis dizer, mas fui acusada, julgada e condenada por
uma nota com três palavras e um louco que se jogou da janela. Acordei com um
grito e o interfone tocando sem parar. Fui atender e me perguntaram dele. fui
procurar pela casa e não o vi. A campainha tocou e o vizinho entrou correndo e
foi para a janela. Eu fui atrás e vi. O corpo, o sangue. O tempo parou. Eu
desliguei. Morri ali. Voltei, ressuscitei. Mas sou um zumbi. Não sei quanto
tempo de pena eu tenho que cumprir para sair dessa prisão. Sentem pena de mim.
Eu não, porque eu não sinto a pena, eu vivo a pena, aquela que eu tenho que
agir, que cumprir. Quem vai me liberar? Nem sei por onde começar. Entre o fim e
o começo, nessa ordem contrária, o que existe?
Simone de Paula – 11/04/2018