Aquela rua pequeninha guardava grandes tesouros. O silêncio no meio da cidade movimentada era um deles. Quando eu queria aflorar meus sentidos, escolhia aquelas calçadas para caminhar. Andava, olhava o céu e as árvores. Algumas tinham frutas, outras
só folhagem. Eu nunca entendi de plantas, acho que tem árvore de flor,
de fruta e de folha. Sei que não é bem assim, mas vale para a minha
imaginação e meu pensamento catalogador de impressões
estéticas.
Sentir o sol e o vento na pele, tão suave, despertava desejo, me elevada a um estado apaixonado. Num dos meus passeios notei um pequeno restaurante. Naquele instante, pensei que na próxima vez viria para o almoço. Mas o tempo era incontável ali e a dona estava na entrada, sorriu e me apresentou o lugar, contando o que ela tinha na vida, sem a preocupação de falar do que poderia ser atraente como um negócio. Ela fazia a comida, servia, gostava do clima de almoço de família.
Quem frequentava eram pessoas que trabalhavam perto e que faziam vínculo,
conversavam da vida. Saber disso abriu meu apetite e entrei pra
experimentar. A comida era saborosa, colorida, para ser degustada. Tudo que excita os sentidos deve ser usufruído com calma. Não tem repeteco, mesmo que tenha segunda vez.
Naquele dia, voltei pra casa satisfeita, nem precisava mais pensar. A alma viva sorvia os sentimentos fluídos e presentes
Numa manhã de domingo, saí por aí, sem lenço nem documento. Essa expressão é curiosa, porque o que teria o tal do lenço a ver com a identificação de uma pessoa? Aliás, a que esse lenço se refere? Se pensarmos no véu das muçulmanas, o lenço tem uma forma de presentificar um limite ao corpo feminino, repressão aparente para evitar a invasão que não foi barrada e devidamente internalizada, caracterizando a convenção social desse grupo de pessoas no mundo. Mas esse assunto fica para depois, pois ele não seria apenas uma coleção de lembranças das marcas de memórias que se grudaram no meu corpo, mas um reflexão sobre uma vivência mais do que especial.
Pois bem, estava eu sem lenço e sem documento e achei lá, na ruinha, uma feira. Como cabia uma feira livre ali? Tinha a gritaria dos vendedores, o colorido das frutas e legumes e as barracas divertidas dos consertadores de panelas. Isso sempre existe, isso ultrapassa qualquer demanda de substituição de itens avariados ou desgastados. Fiquei olhando quem estava ali, na barraca dos consertos e ouvindo o que cada pessoa precisava. Uma senhorinha queria trocar o pino da panela de pressão. Ela cozinha feijão para o neto toda semana e não pode ficar sem a panela. Outra mulher chega e pede a borracha da panela de pressão, porque a dela estava desgastada. Panela de pressão é um sucesso. Chega um senhorzinho, que queria trocar a alça da chaleira enquanto a esposa escolhia peixe para o almoço de domingo. O paneleiro arrumava as panelas, vendia as borrachas e batia o maior papo. Todos se conheciam um pouco, cada um escolhendo seus produtos, numa espécie de familiaridade sem intimidade. Ali todos se viam sempre, eram próximos, mas nada passava disso. Numa banca uma gritaria, era um menino que saia correndo com uma maçã, só pela graça da brincadeira. Comprei legumes e frutas e fui pra casa. Cozinhei e peguei um livro. A tarde passou rápido e me fez entender que a vida é como essa rua, com pequenos prazeres, algumas surpresas, familiaridade nem sempre com a intimidade que queremos. É o revezamento entre a repetição cansativa da rotina abundante em tarefas e os intervalos propositalmente desviados do caminho padrão.
Para toda semana tem uma sexta-feira. Para toda vida tem um estado afrodisíaco para viver.
Simone de Paula - 30/09/2016
Conto inspirado nos inúmeros céus, árvores e passeios que já dei na vida e no almoço de hoje, num lugar fofo, (Les délices) com uma amiga querida, tudo que a sexta de vênus pede.